terça-feira, 15 de janeiro de 2013

2012 / O Encoberto (Dossier O Cinema Português Escondido - Cinergia)



 Revista #11 (Setembro 2012) Editada por JOÃO PALHARES








O SUSPENSO.


- UM NOVO CINEMA NOVO ?
Ontem o dia assinalou a ida do realizador Fernando Lopes para um outro lugar. Permanentemente confundindo a arte e a vida, um dos nomes centrais do Novo Cinema Português deixou alguns dos títulos mais importantes ao percurso do nosso cinema, e vincou um espírito sábio que nunca escasseou elogios aos nomes maiores que admirava. Em “Fernando Lopes, Provavelmente” - a conversa com João Lopes (2008), a que na RTP2 se pôde assistir - o realizador relembra o utopismo da geração de sessenta ( o necessário fôlego que agrupou Fernando Lopes a Paulo Rocha, António de Macedo, Silva Melo, Seixas Santos, ...) que dizia não rever na relação da geração actual com o fazer cinema; No entanto, parece não haver cá hoje outro horizonte do que a utopia. As certezas são nenhumas, e nunca como agora foi tão necessário pensar o lugar do cinema neste país cosido sobre si, que à época lavou os olhos com o estilo jovem, e que hoje parece esforçar-se por enterrar as artes de vez.
Hoje às cinco da tarde, de novo se reuniu em Lisboa, para discutir a petição que por aí circula,  assinada por realizadores, produtores, actores, programadores, distribuidores, que evoca um “Ultimato ao Governo”, assinalando o final do período de cerca de três meses de discussão pública da nova Lei do Cinema - uma proposta pendente, bem acolhida pelos profissionais do Cinema -  decidindo-se então um pedido de audiência ao primeiro-ministro para a semana. No texto, lêem-se factos. O relato de uma “situação dramática, com um corte de 100%, que não tem paralelo em mais nenhum sector de actividade".  A paralisação do sector, com a falta aos compromissos do ICA nas produções financiadas para 2010 e 2011 e a falta de concurso em 2012 : “A produção de novos filmes está paralisada – e uma boa parte das empresas produtoras na iminência de encerrar, atirando para o desemprego milhares de pessoas – e a distribuição, os festivais, os cineclubes, a promoção internacional, sem quaisquer apoios”.
As exigências dos signatários são que “o Governo encontre uma solução de emergência para a situação de ruptura e descalabro financeiro do Instituto de Cinema e que permita dotá-lo dos meios financeiros necessários aos compromissos assumidos com os produtores e aprovados entre 2010 e 2011”; A homologação dos concursos de 2011 pelo secretário de Estado da Cultura e a sua contratualização pelo Instituto; Que a “versão definitiva da nova Lei do Cinema seja tornada pública de imediato e que o governo assuma um prazo para a sua aprovação em Conselho de Ministros e posterior apresentação à Assembleia da República”; Que a nova lei consagre “as contribuições e investimentos de todas as empresas que operam no mercado do cinema e do audiovisual”; O “reforço do princípio da atribuição dos dinheiros públicos de fomento do Cinema por concursos públicos”. É francamente irónica esta iminência de que se afunde o cinema quando, como nunca, se parece erguer qualitativamente a olhos vistos (de tal modo, que aos olhos estrangeiros da crítica estrangeira pareça estar de saúde). Depois de décadas de não-reconcialiação, o público português parece procurar os filmes que exteriormente se premeiam. Em conversa no Indie Lisboa, após a recente exibição de RAFA de João Salaviza em sala esgotada, a curta que trouxe de Berlim o Urso de Ouro e que todos queriam ver, Salaviza encolhia os mesmos ombros da dúvida geral -  sem Lei do Cinema, que continuidade?


- FILMES-FANTASMA
Este é o governo de todas as contradições, mas são várias as portas da responsabilidade. Lembre-se a aquisição, em 2010 pela Zon-Lusomundo ( ou pelo abafador, como nomeava Manoel de Oliveira) de 90 filmes produzidos e comercializados por Paulo Branco e 27 filmes do património da Tóbis, também comercializados pelo produtor. Somando aos 45 filmes previamente adquiridos (pelo Coronel Luis Silva, anterior dono da Lusomundo), tornou-se a principal dona do património do cinema português, antigo e contemporâneo (com obras de Manoel de Oliveira, João Botelho, Pedro Costa, João César Monteiro, Teresa Villaverde, Margarida Gil, João Mário Grilo, António Ferreira, Catarina Ruivo, Claúdia Tomaz, Edgar Pêra, Eduardo Guedes, Fernando Lopes, Ivo Ferreira, João Botelho, João Canijo, João César Monteiro, João Guerra, João Mário Grilo, Joaquim Pinto, Jorge Silva Melo, José Álvaro Morais, José Fonseca e Costa, José Nascimento, Luís Filipe Rocha, Manoel de Oliveira, Marco Martins, Mário Barroso, Pedro Costa, Raquel Freire, Rita Azevedo Gomes, Rosa Coutinho Cabral, Teresa Villaverde, Vicente Jorge Silva...). Filmes que, desde então, nunca mais se viram :  “Quando se pede um filme para um festival pedem fortunas, que é para não mexerem neles, e estão a esconder uma das coisas mais valiosas na arte portuguesa que é o cinema português, porque são agentes comerciais do cinema americano". Lembra João Botelho, e para lhe dar razão basta consultar a agenda de uma das 217 salas do monopólio ZON-Lusomundo, ou a programação dos canais da TVCabo, ou os filmes disponíveis para aluguer na Zon-box. ( Não há lugar nestas contas para os prodígios pimba Navarro-Vasconcelos-Breyner-Vieira, esse logro que ainda vai sendo financiado como de cinema se tratasse...) Num momento em que o tema da privatização da RTP anda aos solavancos na agenda (exemplificando como as vistas curtas de Passos Coelho inevitavelmente tomam uma emissora televisiva por negócio, no qual o Estado se deve abster de intervir, eliminando a qualidade de serviço público da consideração...), e num contexto de grande permeabilidade desta companhia no mercado, se este grande agente económico que é a Zon-Lusomundo, por uma vez se organizasse sob uma perspectiva artística e não em busca do imediato retorno financeiro - Por exemplo, num projecto inspirado pela magnífica cadeia televisiva ARTE? E se assim, não só proporcionando ao público uma alternativa de visionamento, solidificasse um novo palco para a visibilidade das obras apoiadas, com uma identidade própria e uma programação efectivamente cuidada, de exibição televisiva e virtual?


A viagem em busca do Cinema Português não acaba - há vários baús onde é preciso volver. Lembramos “O Movimento das Coisas”, o filme abandonado da Manuela Serra (1985) inesquecível sessão de Novembro de 2011, na mais recente edição dos Encontros Cinematográficos da Guarda. Uma importante mostra que soube descentralizar a qualidade da exibição do seu macrocefalismo lisboeta, trazendo consigo outra preciosidade - o acidentado e magnífico Xavier, de Manuel Mozos (1992), que eu sonho um dia ver editado do melhor formato possível em DVD.
Outros títulos portugueses, tantos, tão importantes e tão invisíveis, os que permanecem engavetados na história, lá no ANIM, à espera de restauro, de quem os edite. Por sorte para quem de Lisboa, vão podendo ainda ser vistos amiúde numa sessão da Barata Salgueiro, quando a Cinemateca abre os cofres. É o caso de António Campos, o documentarista independente que filmou sempre sem subsídios, e de quem pouco se vê regularmente. Em 2009, a propósito da sua retrospectiva na 3ª mostra “Panorama”,  uma notícia de jornal lembrava como a Midas Filmes anunciara dois anos antes a intenção de editar a obra integral do cineasta em DVD, mas que “o projecto continua alegadamente à espera de luz verde da entidade detentora dos direitos dos filmes”. Outro caso conhecido é o do importante cineasta António Reis, cujos direitos se encontram em posse da mulher e co-realizadora Margarida Cordeiro.

- AINDA ASSIM, MOVE-SE.

Já se sabe acerca das fraquezas na diversidade de oferta em sala ou na televisão (em canais generalistas ou por cabo), onde as programações descriteriosas indistintamente se entopem de filmes de hollywood de considerável orçamento e fraca qualidade. Já se sabe que estes, investindo em máquinas publicitárias esmagadoras, aí garantem a adesão e as consequentes receitas, à custa da desinformação massificada do seu público, insistindo numa padronização do estilo, nivelado por baixo à semelhança da generalidade dos conteúdos audiovisuais.  
Mas num cenário mais ou menos pintado nos tons catastrofistas, com a revolução digital, a internet surgiu para equilibrar o barco. Nunca como hoje - nem na geração dos Cahiers amarelos! - a cinefilia teve assim espaço para florescer, possível de acompanhar as nuances de cada gosto, de se expandir ao passo de uma descoberta ininterrupta, de gerar comunidades virtuais específicas, de descentrar a discussão, de dar a conhecer o mais submerso e mais raro. Film Studies For Free, o título é de um grupo virtual de discussão em torno do cinema, mas quase podia ser um slogan pronto a demonstrar a relação entre a cinefilia e a internet. É claro que a internet é, em primeiro lugar, um encontro sem paralelo com o extensíssimo mercado internacional de livros e DVDs especializados, incomparavelmente mais vasto do que a mais focada das livrarias ou bibliotecas em Portugal. E se é verdade que a experiência presencial se dissolve, que a atenção se subtrai perante a multiplicidade da difusão de imagens, o novo espectador, alheio a condicionantes temporais e geográficas, torna-se simultaneamente programador e crítico. O compartilhar de filmes é o grande altruísmo; é a nova forma de viver a cinefilia, que dá a ver uma cópia do Trás-os-Montes (sem legendas, “ripada” de um VHS granulado, gravado da RTP2 em mil novecentos e noventa e tal), ao ávido japonês que anda a descobrir o cinema português através do Karagarga. Como eu, porventura, usarei a mesma plataforma para descarregar certos títulos japoneses de difícil acesso. É claro que algumas destas práticas passarão muitas vezes ao lado da lei, mas isso não é tão condenável como a deterioração das exigências com a qualidade técnica da exibição, que melhor saiba valorizar a obra em questão. E é aqui que entra o papel crucial do restauro, da edição, da distribuição, e da descentralização programática anteriormente mencionados: para que os filmes que imperativamente precisam de ser conhecidos, cheguem aos que os querem conhecer, se não no seu formato original, da forma mais próxima possível dele.


A libertação dos meios de produção, que deu os primeiros passos com o acesso ao vídeo, tem hoje um tremendo protagonismo face às limitações das entidades financeiras. Na era em que todos somos massivos produtores, consumidores e editores de imagens,  em que até a autonomia dos mais pequenos gadgets capta com uma qualidade extraordinária, dispensaram-se equipamentos pesados, grandes equipas hierarquizadas, produções dispendiosas. (E, provavelmente, dispensam-se também as escolas de cinema...) Em relação a este contexto, o que dizer? O que ninguém tem muito interesse em dizer - seja porque são cineastas pessoalmente beneficiados com a reclamação, seja porque são críticos de cinema que não são cineastas (como todos os visíveis em Portugal, de momento...). Interessa dizer que se não há dinheiro neste país para filmar em película, então já não se devia filmar em película. E que, se a Lei do Cinema chegar, esperemos, que chegue consciente da época digital em que se encontra - que distribua os seus subsídios mais equitativamente, por um maior número de projectos. Efectivamente, permitindo que quem deseja iniciar um percurso no cinema, possa fazê-lo mais facilmente.


Neste ponto de estagnação, espera-se para um veloz amanhã o cumprimento dessa promessa em suspenso, a Lei do Cinema que tarda. E ainda de outro projecto animador de José Viegas, que prevê a implementação de um Plano Nacional do Cinema, a partir do ano lectivo 2013-2014, a compreender cem títulos chave da história do cinema nos programas de ensino.


Sabrina Marques,
Lisboa, 3 de Março de 2012

sem o novo acordo ortográfico