quarta-feira, 25 de outubro de 2017

2017 / Lifeforce ~ in memoriam: Tobe Hooper (1943-2017)


Lifeforce (1985) 

´´Projecto: Aumentar a alma sem MORRER.´´ Gonçalo M. Tavares (Livro da Dança)
Com a sua narrativa desconstruída, arrojados efeitos visuais e cenários de assombro,  Lifeforce (1985) é um filme nada canónico. Mas é junto dos clássicos que melhor o encontro. “Animula vagula blandula / Hospes comesque corporis / Quae nunc abibis? / In Loca / Pallidula rigida nudula nec ut soles dabis Iocos”. Foi Adriano, o mais poético dos imperadores romanos, quem escreveu os versos que iriam servir de ponto-de-partida a Marguerite Yourcenar, que lhe reconstruiu os diários (Memórias de Adriano, 1951): “Pequena alma terna flutuante / companheira e hóspede do corpo, agora se prepara para descer a lugares / pálidos, árduos, nus / onde não terás mais os devaneios costumeiros”Lifeforce é um lugar de investigações da anima latina: a alma é o fôlego que insufla de vida os corpos, condição indispensável para a sua força. Aqui, no entanto, a ausência de alma desvitaliza o corpo, mas não o extingue: a vítima está em latência e, como um vampiro, precisa de ‘‘infusões regulares de energia’’. Agora seco, o seu corpo ‘pálido, árduo, nú’ mantém a memória do recente élan vital (Bergson) e faz por prender-se à vida em seu redor, sugando o ar dos corpos vivos para se reanimar e recuperar para si o fôlego, o sangue e a carne plena. Estamos no domínio do vitalismo, onde a vida é o ímpeto e destino do organismo humano. E o que é que dá vida? A alma, a génese, a força anímica dos corpos. Ouvimos em Lifeforce: ‘‘A teia do destino carrega o teu sangue e a tua alma de regresso à génese da minha forma de vida.’’ Entre estes space vampires, deslumbrantes corpos humanóides sedentos de vida humana, a alma quer mais alma: Dum vivimus, vivamus! (Enquanto vivemos, deixem-nos viver!), diz uma outra expressão latina, em alusão a uma potência constituinte – o princípio inato da preservação dos corpos vivos – que nos reencaminha até Tales de Mileto, o pré-socrático que começou por suspeitar que as formas de circulação da energia definem o próprio conceito de energia. Mas o que é que estes homens fazem ao corpo que, por um momento, viram morto e depois volta a insuflar-se de vida? A lei é matá-lo, sempre. A morte é o nosso medo e os mortos não pertencem entre os vivos.
Face a um filme como uma exclamação filosófica sci-fi sobre a hipótese eterna da alma que, errante face à decrepitude fácil dos corpos, é capaz de vivificar outros, regressamos a Yourcenar para lembrar a sua Obra ao Negro (1968). Se os insucessos alquímicos do precursor Zénon não encontram o Elixir da Vida, está exposto o mais primordial confronto de escalas entre corpo e alma: nem os espíritos maiores sobrevivem à injusta decadência da matéria. Ao assinar a incontornável De Anima/Da Alma, Aristóteles assumia, entre uma miríade de nuances sobre os princípios comuns a tudo o que vive, ali ‘‘considerar toda a investigação respeitante à alma como sendo de importância fundamental”. E Tobe Hooper sempre soube: mais importante do que trazer em si o génio, é desenvolvê-lo e largá-lo ao mundo, seja de que forma for. Resta-nos copiar o vampirismo de recordar a fundo e, insuflados pelo que deles cá ficou, daí sorver lifeforce.
Sabrina D. Marques

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

2017 / Entrevista @ Re.Vis.Ta #4 / Tatiana Macedo: nada é o que parece à primeira vista.


Tatiana Macedo: nada é o que parece à primeira vista. 

Tatiana Macedo (1981) vive em Lisboa e trabalha internacionalmente. Mestre em Antropologia Visual \(FCSH, 2012) e licenciada em Fine Arts pela Central St. Martins College of Art and Design (Londres, 2004). Foi distinguida com o Prémio Sonae Media Art 2015. Em Novembro de 2017, parou em Lisboa para duas horas de chá e conversa com Sabrina D. Marques e, em exercício regressivo, reflectiu sobre um percurso intenso e adiantou preparos para o futuro próximo.

 

I.  ‘‘AVENIDA DA LIBERDADE’’ / 2017

A 27 de Outubro de 2017, o Museu do Aljube - Liberdade e Resistência acolhe a primeira exposição individual de uma artista portuguesa contemporânea, Avenida da Liberdade de Tatiana Macedo. Convocada pela Lisboa, Capital Ibero-Americana da Cultura 2017, esta vídeo-instalação com quatro canais justapõe imagens fotográficas analógicas de 2004 e 2013, a filmagens aéreas contemporâneas feitas para esta exibição. No interior remodelado de um espaço cuja missão é preservar a memória da resistência à ditadura, ouve-se pela voz do músico Benjamim sobre as estratégias de fuga à Prisão do Aljube, enquanto o vídeo, feito a drone, percorre os telhados tal como os que dali souberam fugir. A folha de sala, assinada pela artista, sublinha a ironia do título: afinal, o palco das maiores manifestações e insurreições de poder popular que atravessam a história portuguesa é também uma grande montra da participação portuguesa num sistema de sujeição global. Face a uma obra experimental, é sobre Liberdade que reflectimos. 

 

SABRINA D. MARQUES (SDM): Numa justaposição de som, fotografia e vídeo, cruzas o teu arquivo pessoal aos textos que recolheste no processo de pesquisa, no centro de documentação deste museu. Pela sua textura analógica, parecem fotografias de época mas são documentos de manifestações relativamente recentes na Avenida da Liberdade. Pretendias criar essa confusão?

TATIANA MACEDO (TM): A ideia de Liberdade e de como fazemos uso dela sempre foi um interesse meu, mais do que isso, sempre foi uma maneira de estar. Fui educada para viver em liberdade de pensamento, com deveres e com direitos. Quando o António Pinto Ribeiro me convidou a criar uma peça nova para este Museu, as primeiras linhas que escrevi foram que, tendo nascido em 1981, aquilo que me parecia mais justo seria pensar como fazemos uso da Liberdade e dos direitos que herdámos da Revolução de Abril e da resistência à ditadura. Logo, recorrer ao meu arquivo pessoal, àquilo que já andava a fotografar há vários anos, pareceu-me lógico. Estas são imagens, que apesar de terem sido feitas por mim há anos atrás, na sua maioria nunca foram mostradas e só agora tomaram a forma de vídeo-instalação. Esta instalação de 4 canais divide-se em 3 grupos. Dois vídeos em que uso imagens de uma manifestação na Avenida da Liberdade contra as medidas de austeridade, em Março de 2013, e nesta manifestação apontei a minha máquina para 3 situações distintas: um homem que filmava os manifestantes em cima de uma árvore, um grupo de pessoas em torno da estátua aos combatentes da I Grande Guerra e uma senhora que segurava um cartaz onde se lê ‘‘O Desemprego Mata-Nos’’. Um outro vídeo faz cross-dissolves de uma série de naturezas mortas que fotografei em estúdio, em 2004. Vê-se, por cima de uma mesa, um par de botas alentejanas, um vaso, uma cadeira... Num quarto vídeo, aquele que foi filmado agora, sobrevoei os telhados do Aljube e da área circundante ao museu. Esta peça partiu da descrição da fuga bem-sucedida de Jaime Serra e dos seus companheiros pelos algerozes e telhados do Aljube em direção à Graça. Mas nem todas as fugas desta prisão foram bem-sucedidas. Esta é a primeira peça que encontras quando entras na sala, tornando-a bastante imersiva - começas pela fuga para a cidade. O som é separado em 3 canais: um sintetizador, um piano e voz, que se cruzam aleatoriamente loop após loop. Foi uma colaboração com o músico Benjamim, que foi ainda narrador. Os textos que lê são excertos recolhidos por mim do diário do Miguel Torga nos dias seguintes ao 25 de Abril (o autor também passou por esta cadeia), pequenos trechos de Luandino Vieira, Raúl Rosa (sobre a luta dos mineiros de Aljustrel), e sobretudo relatos de fugas descritos por Jaime Serra e José Magro. A qualidade analógica das imagens a preto-e-branco remete-as para o passado, e o homem na árvore lembra aqueles que subiram às árvores no Largo do Carmo repleto de gente no 25 de Abril de 1974. Mas depois, se olhares com atenção, percebes que estamos no presente. Nas minhas peças, as subtilezas são muitas e é preciso estar atento, nada é o que parece à primeira vista. 

 

II. ORIENTALISM AND REVERSE / 2017

Ao fundo, a série de grandes fotografias envidraçadas contrapõe-se às pequenas imagens rectangulares, deitadas em prateleiras na sala ao lado. Estamos a 28 de Setembro de 2017, na inauguração de Orientalism and Reverse, exposição individual de Tatiana Macedo na Galeria Carlos Carvalho. Os detalhes das madeiras pintadas à mão casam com as imagens que emolduram, grandes abstrações de evocação pictórica. Através do apelo colorido destes objectos únicos, captados nos autocarros de Shanghai, a artista portuguesa reflecte sobre a consciência de ser estrangeira num país de espectros, no qual vê apenas o que pode ser visto. 

 

SDM: Sentes que, face à tua obra, só depois de várias leituras é que se consegue desenhar um contínuo lógico?

TM: Sim, tenho reparado que sempre que falo sobre o meu trabalho ou quando o apresento, é que as pessoas começam a perceber ou a entrar no meu universo… Pouca gente conhece o meu trabalho como um todo. Conhecem uma peça ou outra. E como as peças são aparentemente tão distintas umas das outras, ficam com uma ideia muito esparsa do que é realmente o meu trabalho, a minha obra. Precisam que as guie no meu universo.

 

SDM: Sinto que progrediste entre a procura por uma identidade colectiva até chegar a um lugar mais pessoal, da ordem da identidade privada. Estás mais próxima de ti e mais distante da tentativa de formular ‘sistemas de realidade’, usando uma expressão tua?

TM: Sim e não. Aquilo que é mais básico é teres a noção de ti. E a palavra ‘‘básico’’ tem duas leituras: uma que define o que há de mais simplista e outra que define o que há de mais basilar. Tudo o que é fundamental decorre da auto-reflexividade. Cada um tem o seu próprio “sistema de realidade”, interpreta e vê o mundo segundo este sistema. Nesta série, por exemplo, não pretendo que o espectador ou observador seja transportado para uma viagem para fora de si, mas que se aperceba de si mesmo e de onde se situa perante aquilo que está a ver. É perguntar-nos a nós próprios ‘de onde partimos ao pensar’. Afinal, eu penso assim, porquê? Estou aqui, neste lugar, educada nesta cultura e neste meio, com este ambiente e estas pessoas à minha volta - mas, e se eu estivesse ali, naquele outro contexto, com outra educação? O exercício é esse, o de te reposicionares constantemente, sem nunca perderes essa noção de ti. Materializar ou experienciar cada peça, implica uma viagem de ida e volta: tens sempre de negociar o teu eu individual com o teu eu no contexto que habitas ou em que te moves. E a negociação é constante, nenhuma cultura é estática.

 

III. WHAT IS UNSPOKEN / 2016    

Editado em Berlim em 2016 pela Kunstlerhaus Bethanien, What is Unspoken é uma publicação retrospectiva, que atravessa a obra de Tatiana Macedo contextualizando-a entre artigos críticos da autoria de Birgit Hein, Emanuele Guidi, João Silvério e Ulrich Ziemons.

 

SDM: Porquê conceber uma publicação colectiva como What is Unspoken, em lugar de fazer catálogos individuais das obras expostas?

TM: Decidi fazer este objecto o ano passado para olhar para a minha obra em retrospectiva e pensar no que poderia haver em comum no meu corpo de trabalho, que é aparentemente tão díspar, questionando se existe uma linha de pensamento ou de prática que os percorra. Convidei alguns autores para escreverem sobre as minhas peças que considero mais paradigmáticas. No meio do livro, introduzi uma espécie de ensaio visual, que intitulei de Your System of Reality e onde misturo imagens inéditas de vários dos meus projectos, provocando um diálogo entre eles. Pedir a alguém  uma leitura escrita sobre o teu trabalho, é sempre o início de um diálogo. Também te ajuda a distanciares-te do teu próprio trabalho e começares a ver coisas que não tinhas visto antes, ou a consubstanciares o que havias pensado e uma série de intenções – leituras, etc. Decidi intitular de “What is Unspoken” porque trabalho muito o universo da imagem. E faço-o porque não o poderia fazer de outra forma:“What is Unspoken” é também parte de uma citação de James Baldwin, em que ele diz “...what is unspoken, what is never said to the Master”, ou seja, exprime ideias que são inibidas, censuradas, proibidas. Hoje o contexto no ocidente é de auto-censura, por muito que acreditemos que temos mais liberdade de expressão. É uma faca de dois gumes. 

 

IV. BELA, 2016

A mesma mulher, jovem e bela, protagoniza as grandes imagens, fitando-nos e assegurando que não receia a câmara nem quem está atrás dela. “Bela” é uma instalação individual, composta pelas gigantescas ampliações que contam uma história de fascínio trágico, de um fotógrafo angolano por esta mulher (tia de Tatiana), que elegeu como musa. Descendente de uma família onde se miscigenam etnias, naturalidades e nacionalidades, em Bela, Tatiana Macedo propõe que a universalidade da ideia de romance seja o pano-de-fundo para uma reflexão particular sobre o passado colonial europeu.

 

SDM: Suportando estas grandes imagens, o espaço está habitado por garrafas de Afri-cola, uma surpreendente bebida alemã que parece uma ‘‘Coca-Cola das Áfricas’’. A instalação Bela foi a única vez em que utilizaste objectos significativamente, para lá da fotografia e do vídeo?

TM: Sim, penso que sim. Se reparares, tal como a coca-cola, a garrafa tem a forma do corpo de uma mulher. Para quem encontra esta bebida pela primeira vez, pensa que “Afri-cola” é uma bebida Africana. Mas foi patenteada em Colónia, Alemanha, em 1931. Pretendo questionar a viagem e migração de objectos, mas também de imagens. Quando impressas são objectos também. Ou seja, tanto a Afri-cola, este produto de consumo, como as fotografias que o fotógrafo fez da minha tia, imprimiu e lhe ofereceu, fizeram uma viagem e sofreram uma descontextualização, ou melhor, um novo reposicionamento. Fala-se agora muito na migração dos objectos que preenchem as instituições e museu etnográficos da Europa e dos EUA, Austrália, etc. Arjun Apadurai propõe que se comece a pensar em falar da narrativa da viagem do próprio objecto, da origem até ao local em que é exibido. Nesta instalação, que se estende por dois andares, inclui fotografias de grande, mas também de pequeno formato exibidas em prateleiras, e uma instalação vídeo que é uma escultura também. Foi mostrada em Berlim, a bebida é local (produto alemão), mas foi re-contextualizada como fazendo parte de uma obra em contexto artístico. Já as imagens, viajaram das mãos do fotógrafo para a minha tia, de Angola para Portugal e de Portugal para a Alemanha, nas minhas mãos e por mim foram reproduzidas, trabalhadas, ampliadas, transformadas em vídeo, em escultura, etc. O espectador desta exposição tem que negociar uma série de coisas: a) o que sabe da história destes objectos e dos seus contextos originais e b) quão livre ou aberto está para receber este tipo de imagem e narrativa que obriga a olhar para um período histórico de um ponto de vista pessoal, íntimo, mas também escultórico e retrabalhado.

 

SDM: Problematizas a evolução do feminino desde o contexto colonial até hoje: Bela colecciona vestígios de um passado ao qual tens acesso por imagens e pelo testemunho vivo da tua tia. Quando propões, através da imagem, um discurso dialéctico entre estes dois tempos, estás a vincar a necessidade de voltar a revisitar a época colonial com um olhar crítico?

TM: Seguramente. As imagens são datadas, foram tiradas em 73/74, antes da independência .Expus pela primeira vez estas imagens, de uma determinada maneira e consoante certas decisões como, por exemplo, apagar os traços do tempo. Tinha provas 10x15 que a minha tia guardava numa caixa de sapatos e que estavam muito danificadas (fungos, riscos, etc). Digitalizei essas fotografias (não tinha acesso aos negativos) e limpei os traços desse envelhecimento como se tivesse apagado o intervalo entre o momento em que as fotografias foram tiradas e o momento em que as estou a reproduzir e a expor. Por um lado, procuro dar uma certa actualidade àquelas imagens, por outro, é como se eu estivesse a continuar o trabalho do fotógrafo.

 

SDM: O autor das imagens já faleceu?

TM: Sim, faleceu em 1975. Através deste exercício, é como se eu tivesse tomado o lugar dele. Nunca ninguém tinha visto aquelas imagens, para lá dele e da minha tia, que as guardou ao longo de quarenta anos. Ao dar-lhes visibilidade no espaço público e contexto artístico, estou a dar visibilidade ao seu trabalho ao mesmo tempo que confronto as pessoas com as suas próprias ideias / lugares comuns sobre o colonialismo. Ao contrário do que acontece numa exposição histórica, onde se mostram “documentos”, estou a misturar a criação com o olhar íntimo de alguém. Ao eliminar o hiato temporal, procuro que a pessoa se reposicione face ao que está a ver e que dê uma continuação directa a esta narrativa de 1973/1974. É uma história pessoal entre duas pessoas. Tem um enredo próprio, romanesco, e um impacto pessoal em quem vê, pouco comum ao tema.

 

SDM: Ao trabalhares sobre imagens que não são tuas, estás a dar seguimento a uma tendência muito expressiva da fotografia contemporânea que enfatiza a ideia de que, para lá do gesto fotográfico, a missão do fotógrafo é essencialmente a de organizar imagens e de através delas dar uma ordem ao mundo. Um caso português de relevância é, por exemplo, o de Daniel Blaufuks. Achas que, no meio desta sobre-produção de imagens, já não é tão essencial fotografar mas sim ‘‘ver com olhos de ver’’ tudo o que nos escapou? 

TM: Neste caso, transformei as fotografias. Ampliei-as, reconstrui-as, redimensionei-as. Estou consciente de que quase todos tiramos fotografias com telemóveis (note-se que digo “quase”) e que se tiram hoje mais fotografias por dia do que nunca, mas continuo a achar importante fotografar (e filmar) porque é um exercício de observação e de atenção que obriga a pensar fisicamente, com uma lente, a exercitar distâncias, posicionamentos físicos, mentais, emocionais, intelectuais. Exercê-los com relação à edição, à re-leitura, ao agrupamento e ordenamento de imagens já produzidas, é a continuação do exercício fotográfico, ou pode ser um exercício por si só. Mas falando de mim, da minha experiência pessoal, penso que não seria a pessoa que sou, ou pensaria da forma como penso, se não tivesse passado tanto por isto. Em suma, quando perdes tempo a tentar enquadrar uma determinada coisa, estás a fazer um exercício importante que é o de te posicionares em relação a essa mesma coisa, construindo um ponto-de-vista. E isso é fundamental. Acredito no pensamento também como uma acção física.

 

V. 1989 / 2015

A instalação expandida 1989 acontece a cores e a preto e branco entre três canais que se relacionam entre si, de forma síncrona, complementar ou assíncrona, no interior de um cubo negro e a determinado ritmo. O inesperado movimento ora nos traz uma leitura bilingue por uma tradutora que medita sobre tradução e colonialismo, arquivos do histórico debate de 1965 entre James Baldwin e William F. Buckley Jr ou vistas contemporâneas do Temple of Heaven em Pequim, do Soho ou de Hong Kong. A peça 1989 trouxe a Tatiana Macedo o Prémio Sonae Media Art 2015. 

 

SDM: Como ocidental, a data 1989 ecoa imediatamente em mim como o ano associado à queda do muro de Berlim, marco histórico do fim dos imperialismos europeus. No entanto, o teu título alude aos protestos em Tiananmen Square (China), um massacre que parte de uma elite chinesa contra a ditadura PCC e que, apesar dos estimados dez mil feridos, não acabou com o regime. O experimentalismo deste projecto promove a entre-contaminação de espaços, tempos e ideias, reflectindo permanentemente o passado face ao presente, o ocidente face ao oriente. A tradução e o debate falam tanto da passagem dos ideais entre os povos como do desnível entre a palavra e a acção?

TM: É muito importante não haver uma tese acabada, e que o exercício de desmontar binómios de pensamento seja transversal ao tempo, ao lugar, e às linguagens expressivas que eu uso (imagem em movimento, som, palavra, voz, gesto). A figura central desta peça que articula os diferentes capítulos, é uma intérprete de tradução simultânea chamada Lara que lê textos (resultantes de uma colagem de vários excertos e autores). A Lara não é uma ficção, ela revê-se ali, personifica as ideias. Além de ser intérprete profissional há mais de 10 anos, viveu em pleno a experiência colonial. Nasceu em Moçambique, cresceu na Swazilândia e voltou a viver na África do Sul. Acabo a conversar imenso com ela sobre a sua memória e posicionamento face à experiência do apartheid. Esta peça é, em última análise, um exercício de montagem constante, de queda de muros de pensamento e um estímulo para um pensamento de fronteira. Não basta olhar para trás e reviver um ressentimento, é preciso ver de que forma as ideias persistem ou se transformam e de que forma atravessam territórios, culturas, etc. Apesar de ser um objecto ensaístico, apresenta várias ideias com pontos de ligação entre si, dando a ver como hoje em dia todas as coisas são interdependentes. A personificação das ideias aqui expressas sob a forma verbal e não-verbal, passa também por uma travessia ‘documental’, que engloba imagens do que eu vivi e filmei em Pequim e Hong-Kong, juntamente com registos do debate Baldwin-Buckley em Cambridge, em 1965. É triste, assistir ao decaimento do nível de erudição do debate de ideias, e ver a emergência de figuras como Donald Trump.  

 

VI. SEEMS SO LONG AGO NANCY / 2011-2012

É um filme de ‘‘mãos, rostos e pés’’, notou Ulrich Ziemons. Mas é também um filme sobre a duração, concentrado nas micro-abstracções dos corpos entediados cujo trabalho representa a regulada quietude do museu. No interior do cubo branco, estes guardiões da arte da Tate Modern ou da Tate Britain observam quem observa. 

 

SDM: Tentaste elidir a tua presença quando estiveste a filmar nos vários museus? Estavas à procura de passar por invisível?

TM: Quando fazes muitos trabalhos documentais, como eu fiz, para pagar as contas, aprendes a tornar-te invisível. Mas num museu, o mínimo gesto é ampliado. O museu ou a galeria são espaços de hiper-visibilidade. Porém, usar um uniforme pode também dotar-se de uma certa invisibilidade. A pessoa que usa um uniforme passa a ser vista não mais como uma pessoa, mas como representante de uma entidade. Voltando ao meu trabalho de filmagem nas galerias, tem que haver um trabalho longo de relação com as pessoas: elas têm que se habituar à minha presença e ao meu equipamento para haver outra descontração e familiaridade. Seems So Long Ago Nancy é um registo objectivo daqueles corpos, mas também dos seus momentos de evasão - o que observas nos pés e nas mãos em movimentos repetitivos é uma cabeça em deriva. É o escape daquela condição, tiques de quem se habituou a ter de permanecer na mesma posição durante um determinado período de tempo, e que se estende por intervalos, muitas vezes durante anos. É também uma observação daquele micro-cosmos humano, e de como este representa a sociedade que supostamente fica do lado de fora do museu, mas que está sempre lá dentro.

 

SDM: O Playtime (de Tati) ou o Modern Times (de Chaplin) foram inspirações assumidas para o Seems so Long Ago Nancy. Na instalação Foreign Grey, aludes à Histoire de Vent (de Joris Ivens) e também homenageias Griffith ao chamares a uma das peças ‘O que faltava ao cinema moderno’. No entanto, parece-me complicado, face a um trabalho tão original e díspar, buscar ecos de inspirações possíveis, apesar da sua direcção política ser claramente certeira...

TM: Todos temos referências mas eu não tendo a fazer um trabalho de citação. No entanto, pode haver um trabalho de continuidade ou descontinuidade, ou de transformação das ideias. No final da conversa com o Emanuele Guidi, para o meu livro, fui buscar uma longa citação do John Akomfrah, que gosta tanto de free jazz quanto eu, onde faz uma analogia com o seu processo de trabalho: para ele o momento alto do free jazz é o do intervalo. De repente, faz-se silêncio e estamos todos conscientes uns dos outros. Mas isto só acontece porque antes passámos por aquela experiência colectiva - uma experiência que se equipara a uma multidão a sair do escuro da sala de cinema. Depois do filme, voltas à cidade e, de repente, tens uma consciência aguda de ti e do que te rodeia. Ele diz que o seu trabalho é isso: um compromisso com o momento, respeitando a integridade das coisas e colocando-as em diálogo. Como no jazz, começo sem saber como vou acabar. É um projecto diferente de reflexão que se vai modificando consoante os materiais em que estás a trabalhar. Trata-se, verdadeiramente, de um exercício associativo de montagem e de “ouvir” os materiais. 

 

VII. FOREIGN GREY / 2014

Um trabalho fotográfico encomendado em Pequim serviu como ‘‘oportunidade para se confrontar com esta nova realidade vivida nas suas relações fundamentais: laboral, temporal, comportamental, visual, sonora, linguística, social, natural.’’ Sob o disfarce de fotógrafa, entregou os esperados céus azuis mas aventurou-se nos territórios laterais. Esta instalação vídeo, composta por 9 peças, é projectada ou exibida em ecrãs verticais e horizontais ou sobre a textura interior do próprio edifício, com intenção escultórica. 

 

SDM: Em Foreign Grey, a justaposição das peças começa por apresentar um ambiente, depois avança para um plano de contexto e só depois introduz as ‘‘personagens’’. Por um lado, a abstracção e fluidez de uma projecção vertical verde sobre parede de pedra. Por outro, o detalhado figurativo dos materiais que constroem aqueles hutongs, habitações tradicionais que destoam com o horizonte de betão da Beijing pós-moderna. Estamos em pleno exercício de montagem, expondo a tua tão vincada ligação ao cinema?

A exposição Foreign Grey, feita para a galeria de arte cinemática Solar, em Vila do Conde, é um exercício narrativo expandido, isto é, a narrativa vai-se formando na experiência do expectador de uma peça para outra. Se o conjunto das 9 instalações revela um pouco do que foi a experiência daquela minha viagem em Pequim, também diz sobre as várias “representações” da China e sobre a reconfiguração da memória. Durante as Guerras do Ópio, os chineses apelidaram o ópio que os ingleses forçaram no seu território de “foreign mud”. Eu intitulei a exposição de Foreign Grey depois de me terem pedido para pintar os céus das minhas fotografias de Pequim de azul.

Essa dualidade (entre um trabalho de imagem mais narrativo e de uso do vídeo enquanto escultura), está inscrita numa dupla composta pelas peças ‘’A Few Colored Tears #1’’ e ‘‘A Few Colored Tears #2’’, expressão que roubei ao Victor Segalan (no seu “Ensaio sobre o Exótico”). A primeira é figurativa: uma rua filmada à noite, um plano fixo, que se perde nas chuvas,nas pessoas e nas situações que se desenrolam naquele campo restrito. Outra é uma parede verde de cerâmica no lobby de um escritório, que tinha água sempre a escorrer (como é usual na decoração asiática) e que projectei sobre parede de pedra da Solar, conferindo-lhe uma nova textura e um certo ‘‘psicadelismo’’. Nesse texto, Segalan avisa que não vai escrever sobre frutas exóticas ou animais selvagens, mas que ‘’algumas lágrimas coloridas irão jorrar, que rapidamente irão secar.’’. Em suma, é uma espécie de recusa do exercício de exoticizar. Ele é sempre um estrangeiro mas à procura de viver as situações sem as transcrever com a preocupação de pintar cenários paradisíacos, a vibrar de diferença, de intensidade e de exótico. Recusa permanentemente essa autoridade no retrato do outro. 

 

VIII. I HAVE NEVER SEEN A REFUGEE CAMP / 2017

Comissariada por Mark Gisbourne, a exposição colectiva ROHKUNSTBAU XXIII aconteceu em Brandemburgo, na Alemanha, reunindo peças de autores contemporâneos variados. Se o ponto-de-partida a todos convocava a capacidade de ver ‘‘A  Beleza na Diferença’’, na peça I have never seen a refugee camp, Tatiana Macedo expande-se para um novo médium.


SDM: Para alguém que tem mesclado o vídeo, a fotografia, o som, a instalação e as formas expandidas, ainda há territórios novos para explorar?

TM: Entre Julho e Setembro, expus a minha primeira peça em néon, uma frase que diz: I Have Never Seen a Refugee Camp. São 3 metros e meio de néon vermelho, suspensos do tecto no meio de uma sala. Todos os anos, o curador Mark Gisbourne convida artistas internacionais a produzirem uma peça em torno de um dado tema para ser exposta em castelos obsoletos da região.  O tema deste ano foi: “Die Schönheit im Anderen / The Beauty of Difference” e participaram 11 artistas: Elmgreen & Dragset, Simon English, Pélagie Gbaguidi, Sharam Entekhabi, Andrew Gilbert, Ivan Gorshkov, Emo de Medeiros, Toshihiko Mitsuya, Jeanno Gaussi, Amelie Grözinger e eu. Em anos anteriores participaram o João Penalva e o Vasco Araújo. Esta obra partiu de uma ideia que eu tive há 10 anos mas que nunca tinha tido a oportunidade ou o contexto certo para produzir. Gisbourne descreve esta peça como sendo um contraponto ao meu trabalho prévio que, assente em registos fílmicos e fotográficos, parte sempre da observação de um contexto concreto. Nesse sentido, a frase evoca uma auto-ironia porque começa por dizer: eu nunca vi. Mas está a pedir, mais uma vez,um reposicionamento : já não pensas em mim como autora da peça mas em ti e na tua experiência - será que alguma vez viste um campo de refugiados? O “eu” da frase passa a ser o “eu” de quem vê a peça e lê a frase. Procuro convocar um questionamento do visível e simultaneamente a negação da imagem mediada, por oposição à experiência.

 

SDM: E tu, já viste um campo de refugiados? 

TM: Não. Como a maioria das pessoas à minha volta, não conheço na primeira pessoa a realidade de um campo de refugiados, senão através de imagens mediadas. Poucas vezes o sujeito aparece na primeira pessoa na tradição artística das frases em néon. É mais comum a frase tipo slogan que não tem sujeito, ou que assume uma ideia de verdade generalista que se aplica a todos e a ninguém em particular. Mas para isso já me basta a publicidade e os seus estereótipos., Na minha opinião, isso é pouco interessante. 

 

IX. MIXED FEELINGS - A COMPOSITION FOR CHAMBER ORCHESTRA / 2017

De volta a Alemanha, Tatiana Macedo integrará o projecto Exodus Stations #2, comissariado pela curadora Marta Jecu em colaboração com a Iwalewahaus da Universidade de Bayreuth, na Bavaria. Inspirada pelo legado de Uli Beier, prepara uma nova instalação vídeo, que inaugura a 29 de Novembro de 2017.

 

SDM: Em que medida é que a peça Mixed Feelings – a Composition for Chamber Orchestra dará seguimento às tuas preocupações com o pós-colonialismo africano?

TM: Esta peça surgiu de um convite da curadora Marta Jecu, para participar do projecto Exodus Stations, que convida artistas para entrarem em diálogo com instituições que albergam colecções etnográficas. Neste contexto, achei interessante trabalhar com a Iwalewahaus, em Bayreuth, e no passado mês de Julho estive lá em residência. A Iwalewahaus tem como objectivo preservar e dialogar com uma grande parte da colecção deixada pelo alemão Uli Beier, uma espécie de coleccionador, patrono e produtor que viveu largos anos na Nigéria, no Gana e em Papua Nova Guiné. Uli Beier é uma personagem complexa e agora não temos espaço para elaborar sobre a sua figura e o seu papel, mas posso dizer que um dos seus motes era a transdisciplinaridade. Ele fundou, entre outras coisas, o festival Transcultural de Bayreuth sob o lema “A Yoruba drummer is as sophisticated as a violin player”. Claro que a minha postura é crítica mas tento pensar com o espírito da época. A minha reflexão estende-se também ao que é trabalhar a partir de uma colecção, ou da relação entre a colecção e instituição com o local - neste caso Bayreuth, a terra do Wagner, com todas as suas contradições ideológicas. Enquanto autora em residência da publicação online Wrong Wrong - que no número #10 se abriu ao “Solar” ao longo de 3 posts que são ensaios audiovisuais - reflecti sobre a minha experiência nesta residência. Estes posts intitulam-se de Face A (Abertura), Face B (Bayreuth) e Face C (Confluence).

 

Esta entrevista segue o Antigo Acordo Ortográfico.


domingo, 16 de julho de 2017

2017 / VILA DO CONDE Ode Marítima



VILA DO CONDE, ODE MARÍTIMA
SABRINA D. MARQUES


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Festival, Jean-Claude Rousseau, 2010


Há mar e mar. Se penso em Vila do Conde, só vejo a estrada que vai do negro da sala ao azul exterior - e aquele incessante cinema com vista para o mar lembra-me, precisamente, de um filme chamado Festival (de Jean-Claude Rousseau, 2010) que, num cross-fade, monta uma plateia no mar. Para mim, terra e festival confundem-se e Vila do Conde inventa-se como um verbo de movimento: ‘‘cinemar’’ (i.e., ir ao cinema): nesse vaivém da experiência absoluta, os filmes dissolvem-se nos horizontes abertos da pitoresca terra de pescadores. Defronte do espectáculo marítimo, recordo-me dos versos de Afonso Lopes Vieira: ‘‘Que era dantes o mar? Um quarto escuro / Onde os meninos tinham medo de ir. / Agora o mar é livre e é seguro / E foi um português que o foi abrir.’’ A inclinação naval que convidou a vontade de aventura, também plantou entre os portugueses uma potência poética, essa ‘‘sensibilidade por natureza’’ e, se a construção da nossa literatura tanto se inspira e dedica a esse misteriosa força, esta é condição simultânea da ventura e da agrura. Ao longo de um século, sucessivamente se cantaram as nossas Histórias Trágico-Marítimas, impressionantes relatos de naufrágios e desastres. Através das eras e dos 943km de costa deste país de pescadores, vimos como os que vão nem sempre voltam do mar salgado ‘‘quanto do teu sal / são lágrimas de Portugal!” lamentou Pessoa, que contrapunha ao conservadorismo melancólico o futurismo triunfal da sua Ode Marítima, pela voz de um Álvaro de Campos que febrilha na vida de um Cais Absoluto:‘‘Ah o Grande Cais donde partimos em Navios-Nações! O Grande Cais Anterior, eterno e divino!’’. Mas não só com a palavra se falou do país que é o ‘‘jardim da Europa à beira mar plantado’’ (súmula de Tomás Ribeiro); também o cinema se apressou a trazer-nos à beira-mar. E se as histórias simples da ideologia nacionalista chegavam ao grande ecrã elogiando as epopeicas façanhas dos pescadores contra as tempestades e as tormentas, muito diferente é o mar ocupado pelo turismo e pelo lazer do cinema português contemporâneo.
Estamos no CURTAS Vila do Conde, em 2015, e o filme Maria do Mar de João Rosas acaba de ganhar a Competição Nacional precisamente para nos falar desta transição. Homónimo ao iniciático filme mudo de 1930 (realizado por Leitão de Barros), ainda que também conte uma história de amor, não o podia fazer mais distintamente: longe das raízes etnográficas do simbolismo marítimo, longe do elogio regionalista, longe do impressionismo épico do docudrama, este mar é radicalmente outro. E esta mulher também é outra. (E nisto ocorre-me que seria possível traçar um mapa da progressão da mulher na sociedade portuguesa a partir do seu retrato nos filmes marítimos.)
‘‘Que sou eu em frente a este mar’’? - a pergunta essencialista de António de Navarro também busca, afinal, fixar a ideia, particular e plural, que fazemos da Portugalidade. Em Vila do Conde, penso como os festivais são autênticos ginásios do exercício cinéfilo. Vimos os filmes em sala, voltamos a vê-los à luz das opiniões exteriores e não nos deitamos sem os ver de novo, sono adentro. E, pelo caminho, o diálogo lançou-nos os olhos para o interior de filmes imaginários, títulos convocados pelos pares com o propósito de ilustrarem os seus juízos. São autênticas imagens vindas ‘‘de sobre e de dentro da solidão/ nocturna dos mares’’, estes desconhecidos filmes - enquanto os pudermos apenas sonhar. Aproximam-nos do passado: recuamos até às páginas da antiga cinefilia para nos encontrarmos com as magníficas prosas do delírio, assinadas por esses pobres apaixonados sem torrents, sem internet, sem netflix, sem DVDs e sem blurays que, sobre o mistério, sonharam filmes mais-que-perfeitos. Esta cartografia imaginária inspira-me uma outra e hoje embarco na minha memória marítima, com uma questão à proa: que mares guardei do cinema português? (Deixo um aviso à navegação: o mapa será errante, a viagem imprecisa, equórea, delirante...)
Partimos pelos mares de VILA DO CONDE, escutando José Régio, ali nascido e criado: ‘‘Ai mar de Vila do Conde, Ai mar dos mares, meu mar!’’ Recordamos o título que lhe presta homenagem, Vila do Conde Espraiada (2015), filme produzido pelo festival e realizado por Miguel Clara Vasconcelos, rapaz da terra que aqui evoca a sua vivência à beira-mar entre a reconstituição e as imagens de arquivo, que mostram como os costumes balneares das estâncias sazonais da Vila contrastam com a sua ancestral génese piscatória. Seguimos até à NAZARÉ, como nos recorda Leonor Areal, uma das ‘‘paisagens étnicas do estado novo’’: À procura de ‘‘autenticar o povo’’, estes destemidos pescadores que enfrentam o mar bravo são verdadeiros heróis do mar (Henrique Mendonça), herdeiros da coragem de uma raça de descobridores (Álvaro de Campos). De raízes trágico-marítimas, esta mitografia propagandista está associada não só à glorificação do esforço sobre-humano na luta contra o mar (recurso indispensável para a subsistência destas populações), como ao lusitanismo do fado e da saudade. Apesar de, por norma, se organizarem em torno de uma história de amor simples, estes filmes de pescadores contêm, invariavelmente, uma aterrorizadora cena de tempestade, emoldurada pelo sofrimento colectivo das mulheres, e pelo desespero e devoção das populações pobres nas praias.‘‘E a perene maré, / Flui, enchente ou vazante’’, escreveu Ricardo Reis sobre a imprevisibilidade das condições, onde a pesca se torna um jogo ao qual se tem sorte ou não. O compartilhar dessa saudade convocada pelo mar, na suspensão do retorno e da partida, produz um ‘‘saudosismo integralista’’ (António Sardinha), sofrimento alimentado pela repercussão dos relatos trágico-marítimos na constituição da identidade portuguesa (entre  1552-1602, um quinto da população portuguesa - dois milhões e meio - andou em viagens marítimas). É a meditar sobre a portuguesíssima saudade que nos vemos chegados a SÃO PEDRO DE MOEL, onde Afonso Lopes Vieira se inspirava. ‘‘Chora no ritmo do meu sangue, o Mar’’, escrevia sobre o Penedo da Saudade, onde ainda hoje se encontra o farol que o seu conterrâneo António Campos filmou em 1965 para os últimos planos d’A Invenção do Amor, à época censurado por mostrar a luta de um casal perseguido pela polícia pelo metafórico crime. A trama dos jovens que resistem juntos às adversidades traz-nos ao FURADOURO, emblema do Cinema Novo, onde Paulo Rocha (curiosamente, com assistência de António Campos) realizou Mudar de Vida (1966). Apesar do subtexto alicerçado na etnografia primitiva do cinema português (a pequena povoação, os pescadores, a faina pesqueira), este filme inaugural interpreta ‘‘o exemplo moral e estético do neo-realismo’’ (M.S.Fonseca), cruzando influências importadas a Visconti ou a Rossellini, com gramáticas à Nouvelle Vague. Também o expressionismo alemão e o cinema japonês modelam este retrato da água como elemento transicional, poder de destruição e de serenidade, derradeiro símbolo da passagem inscrita no título. Navegamos até à FIGUEIRA DA FOZ, cenário de Uma Abelha na Chuva (1971), título de chegada de Fernando Lopes à ficção e outro dos alicerces definidores do Cinema Novo. Em ruptura com as narrativas clássicas, a estrutura do filme refunda-se na potência desconstrutiva da montagem, laboratório infindável de formulações. O resultado deste experimentalismo é um filme transgressor que ‘‘obedece ao projecto anti-naturalista de Fernando Lopes’’, lembra José Manuel Costa. E quem haveria de, a partir destas horas, vir cultivar o anti-naturalismo? Estamos em LAGOS, em 1970, e ouvimos Sophia a declamar para a voz-off os versos que melhor lhe lembramos: ‘‘Quando eu morrer voltarei para buscar / os instantes que não vivi junto do mar’’. A ocasião é a da estreia de João César Monteiro na realização, que excede todas as expectativas com um superlativo retrato marítimo da grande cantora do mar da poesia portuguesa. João César gostava tanto da autora de A Menina do Mar como do mar que a inspirava - e só podemos adivinhar que este filme homónimo, com uma proximidade de home-movie, decerto não lhe tenha custado a fazer, apesar de ser uma encomenda para a Gulbenkian. Para sublinhar esse continuado mergulho de um cinema que, desde então, revisita o mar filme após filme, João Bénard da Costa chegaria a afirmar: ‘‘Sempre se disse – até eu disse – que foi Sophia quem levou César para o mar.’’ Verdade tornada literal, se recordarmos os assombrosos planos em que Sophia se perde, simplesmente, a nadar - e, de repente, é como se a estivéssemos a ouvir: ‘‘A terra o sol o vento o mar / São a minha biografia e são meu rosto’’. João César voltaria ao Algarve em 1986, desta vez a TAVIRA, para gravar À Flor do Mar, esse filme de superfícies, como lhe chamaria Bénard. Inspirado no caso real de Abu Nidal, este enredo (em que se ouve falar italiano, algarvio e inglês) é protagonizado por uma italiana que ajuda um atirador árabe que acabou de assassinar um palestiniano e que dá à costa, ferido, num súbito barco de borracha à tona na linha do horizonte. Este mar de fuga e de chegada, de transposição e de entreposto, é o primeiro retrato do oceano comum que se abre com a CEE (a que Portugal acabara de aderir, em 1985). Entre as águas da mudança, ouvimos Álvaro de Campos evocar os ‘‘homens do mar actual, homens do mar passado’’ e mareamos até SETÚBAL, para tomar parte numa das mais vivas demonstrações do cinema militante do imediato pós-25 de Abril. O documentário Setúbal Ville Rouge (1975), dos franceses Daniel Edinger e Michel Lequenne, dá voz às várias associações, comissões e organismos de poder popular, que compõem aquele microcosmos industrial estrategicamente costeiro, delegando-nos o projecto de reflectir sobre o mar do ponto de vista dos recursos (esse sebastianismo dos discursos políticos). ‘‘Restam estas mãos, de frente ao fracasso do oceano’’: eis que o lirismo irmão de Marguerite Duras, que traçou o perfil d’O Homem Atlântico (1982), nos empurra para as ilhas. É no Faial que nos encontramos em águas do rei Tritão, guardião das piscinas naturais do Varadouro (2014) - nome da curta mitológica assinada por Paulo Abreu e João da Ponte*.  Em tons atlânticos, amainamos nos versos de Nicanor Parra, ‘‘Ao longe um país sem nome navegava,/ Como quem reza uma oração me disse / Com a voz que trago intacta nos ouvidos: / «Este é, rapaz, o mar». O mar sereno, / O mar que banha de cristal a pátria’’. Desaguamos na baía de SESIMBRA, onde consta que demorou dez anos a ser filmado um projecto que, então, adquiria na imaginação colectiva o título informal de Elogio ao Surfista. Em 2011, Joaquim Sapinho viria a apresentá-lo como Deste Lado da Ressurreição, reconfigurando um mar de forças bíblicas, potência elementar catártica, que eleva em ascese um surfista que reconhece ao mar o poder de o curar da vida comum. Seguindo as pistas da ‘imatéria’ de um desses verdadeiros filmes imaginários, subimos até MIRAMAR, PRAIA DAS ROSAS para inventar arqueologia para o documentário homónimo que Manoel de Oliveira filma em 1938, e do qual não se conhece nenhuma cópia.‘‘Ó mar, ninguém conhece os teus fundos abismos’’, anunciou Baudelaire, já a pensar nos navegadores do futuro - e em todos os filmes por encontrar que lhes conduzem a viagem. Celebrar os 25 anos do Curtas é cantar a descoberta: resgatar, ziguezaguear do passado ao presente e ir, ir plenamente, na desamarra do cinema, Largo Oceano que só une.


* Dedico este texto a João da Ponte (1957 - 2016), que nos deixou sem poder produzir um filme que, com Paulo Abreu, sonhava para o mar dos Açores. Agradeço a Paulo Cunha pelos contributos no decorrer deste processo de escrita.

Sabrina D. Marques colabora com publicações nacionais e internacionais. Doutoranda em História da Arte, trabalha em investigação, produção, escrita e realização de cinema. Artista visual, programadora da Galeria Germinal e co-fundadora do núcleo de programação alternativa Whitenoise.