domingo, 14 de julho de 2019

2019 / Maya Deren: o ritual de ser

Maya Deren: o ritual de ser


“Num anagrama, todos os elementos existem

numa relação simultânea. Por conseguinte,

no interior do anagrama, nada vem em primeiro lugar

e nada vem em último lugar; nada é futuro e nada é passado;

nada é velho e nada é novo… 

excepto talvez o próprio anagrama.”

MAYA DEREN

prefácio a An Anagram of Ideas on Art, Form and Film 


Kiev viu nascer Eleanora Derenkovskaya a 29 de Abril de 1917, ano da Revolução Russa. A família judia refugia-se em Nova Iorque e Deren estudará na Suíça. Regressa aos EUA: como assistente de Katherine Dunham, pioneira da dança negra e antropóloga de voodoo no Haiti, Deren assina o ensaio Religious Possession in Dancing (1942). Em 1943, rebaptiza-se: MAYA [do sânscrito: a ilusão que constitui o Universo] DEREN [apelido legal da família americanizada].
A dança persistirá. Num braço, um marido, Alexander Hammid, cineasta checo em LA. No outro, uma Bolex 16mm em 2ª mão. Das suas experiências, nasce a curta homemade Meshes of the Afternoon, estreada em 1943 em Greenwich Village, entre vizinhança ilustre. À ancestralidade ritual reúne-se a imaginação simbolista e os elementos recorrem, sobre esqueleto narrativo: chave, flor, xadrez. A corrida vence os degraus em slo-mo e, entre gestos e véus, inaugura-se Maya, mulher em desmultiplicação, performer de si. A poesia é física: Maya duvida de olhos abertos e de olhos fechados, Maya joga a pés, mãos, corpo inteiro contra escadas e esquinas, Maya investiga avessos e revés, recortando oniria de lugar em lugar. Da estranheza dos ângulos e sombras, essa espécie de expressionismo leve, levitante, faz surgir aquela morte-mulher que nos fita sem rosto. O trance film [da tradição alter-surrealista de Buñuel, Dali e Cocteau] expande-se com Deren como eixo incontornável. 
No mesmo ano do sucesso da primeira curta, segue-se Witch's Cradle, co-realizada com Duchamp, que já experimentara a mudez do grão P&B 16mm. Quem é aqui o Sr. Dada, dedilhando a largura da corda lassa? E as veias por fora, subindo os côncavos do corpo? E as mãos abertas como corais desatados por corda a cair? Uma teia adensa. Súbito desenho sobre o negro: trapézios habitados por mulher, organismo contra geometria. Pajarita Matta, actriz. A mulher ocupando a íris do olho. A mulher reocupando a íris do olho. Mulher chamada por? Feitiço. A roda da fortuna a profetizar o fim [evocando os Rotoreliefs do Anemic Cinema, Duchamp, 1926]. A luciferina estrela, um coração exposto e o número 13. Uma teia adensa, Matta a desfio. Matta a ser chamada. Matta a ser a bela bruxa que chama de dentro do filme. Matta a ser prometida pelo título do filme. E o filme enfiado pela teia, complicado. O filme bruxuleado, o filme fechado por si próprio. E, com ele, nós, reféns neste bunker pictorial, ainda agora inaugurado (1942) em Manhattan por Peggy Guggenheim [a grande mecenas do séc. XX]: a galeria Art of This Century.
O labirinto continua para At Land (1944), errante da natureza à civilização, recordando objectos prévios e irrompendo pelo salão dos ilustres (entre eles: Philip Lamantia, Bateson, John Cage e Hammid). Em interstício de femininos e masculinos, é outra vez Deren quem corre, pernas e braços descobertos, cabelos à solta, livre figura que a paisagem engole. Em serena eternidade, a natureza reina para lá dos corpos de distinção e semelhança das mulheres e dos seus esgares de cerimónia. Este protagonismo do clã feminino regressará em Ritual in Transfigured Time (1945-46) e, entre as outras, agora Maya enreda novelos de lã (em evocação à mesh do 1º filme), sob o olhar pontífice de Anaïs Nin à ombreira da porta. Homens e mulheres dançam ou dispersam, reúnem-se ou prosseguem a sós, num inquérito físico sobre a relação entre os corpos e as suas representações. Resgatando o que há de superior à identidade individual na escala humana, Maya estudou a transversalidade da experiência ritual e, em entrega plena, coreografou a sua interpretação com a câmara-de-filmar. Os filmes vibram entre múltiplas leituras. Apesar da escassez de um legado interrompido pelo desaparecimento precoce (aos 44), Maya Deren inscreve-se com lendária solidez na história do cinema avant-garde e - inspiradora como os que nunca se esgotam - irradia assim, bela e dramática, imune ao tempo.


SABRINA D. MARQUES
(para Festival Curtas Vila do Conde 2019)