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sábado, 24 de outubro de 2015
quarta-feira, 29 de abril de 2015
quarta-feira, 4 de março de 2015
2014 / MAIS HUMANOS DO QUE OS HUMANOS (Blade Runner)
Mais humanos do que os humanos*
sobre
BLADE RUNNER de Ridley Scott (1982)
(*o slogan da
Corporação Tyrell é: “Replicants genéticos - mais humanos do que os
humanos.)
“O destino
das figuras é transfigurar-se.”
JOSÉ-AUGUSTO MOURÃO
Estamos em Los Angeles, em 2019. Neste futuro apocalíptico, a Terra e a raça humana sofreram as consequências da guerra nuclear e novas colónias fora deste Mundo foram criadas para destino das migrações humanas. A Terra é agora um submundo sombrio, onde a paisagem hi-tech de néons e arranha-céus jaz como uma promessa incumprida, enublada pela poluição e oprimida por uma vigilância permanente. Aqui, os animais foram extintos e bio-engenheiros marginais enriquecem com o negócio da criação artificial de espécies para ostentação, ou constroem componentes sintéticas para humanoides. Numa atmosfera de incerteza, os humanos são o passado e são o futuro. Entre os humanos caminham indistintos os replicants, uma nova raça de androides bio-robóticos geneticamente desenhados pela Corporação Tyrell com propósitos militares e de exploração do espaço, em aspecto idênticos a um jovem adulto humano mas fisicamente aperfeiçoados. A característica psicológica central de um replicant é a sua falta de emotividade, passível de ser medida por um dispositivo Voight-Kampff - método que combina questões de análise empática e máquinas de medição fisiológica - e que é a única forma de distinguir um humano de um replicant, dadas as similaridades. Encontrar Roy, Pris, Zhora, Leon, Hodge e Mary, os seis replicants modelo Nexus-6 em fuga na Terra, onde são ilegais depois de um sangrento motim no espaço, é a tarefa protagonizada por Deckard (Harrison Ford), um blade runner, oficial especializado na sua eliminação. Estes androides são modelos Mental-A, ou seja, a capacidade intelectual é, pelo menos, igual à do seu criador - como exemplifica o caso do replicant Roy Batty e do seu ‘‘pai’’ Tyrell. Incorporam, por isso, um mecanismo de segurança que determina que a extensão máxima da sua vida seja de quatro anos apenas, impedindo que a inteligência artificial desenvolva mecanismos autónomos de cognição emotiva e de subsequente imunidade ao teste.
Estes replicants
herdam a mente artificial de HAL 2000, o malévolo super computador que em 2001
- ODISSEIA NO ESPAÇO (Stanley Kubrick, 1968) evocava já o problema da autonomização
da inteligência artificial: a sua evolução poderá culminar na revolta da
criação contra o criador, como o monstro nascido das mãos do Dr. Frankenstein.
O que significa, afinal, a sua famosa exclamação ‘‘it’s alive” ? Qual é o valor
ontológico da vida artificial? Este é o conflito central de BLADE RUNNER. A
qualidade que distingue estes androides dos predecessores é terem recebido
implantes de memórias relativas a uma vida prévia que não existiu. Um
passado-simulacro sustentado por fotografias falsificadas alimenta emoções
frágeis nestes replicants e bloqueia
inatamente uma consciência acerca da própria artificialidade (por exemplo, em
Rachael) e, por conseguinte, de uma extinção precoce. Ou seja, estes replicants não saberiam o que eram se
isto não lhes fosse revelado exteriormente. Pris (Daryl Hannah), cita Descartes:
“Eu penso, logo existo”. Logo, todas as dúvidas: Será possível tratar toda a
informação que compõe um ser humano como software a ser implantado em hardware?
Porque coexistem em simultâneo no ser a consciência da vida e da própria
finitude desta? A revolta dos replicants, os super-homens, afinal rima com a revolta dos homens. Apesar do
progresso, a decrepitude é inevitável : é a dança macabra, essa derradeira
incapacidade da existência de aceitar a morte.
No entanto, nesta
narrativa distópica a lei terrestre não protege os replicants porque não
os considera humanos. Espectadores diários das velocidades da evolução, aqui
questionamos realidades hipotéticas nada longínquas: com que princípios
tratar seres orgânicos, feitos à imagem, semelhança e escala do ser humano?
Será legítimo? BLADE RUNNER convida a avaliar o
conceito de Humanidade. Um clima de paranoia constrói-se ao estilo noir,
entre incertezas, perseguições e a opressão constante de um controlo
corporativo e policial. Os olhos são um leit-motif : quando as memórias
podem ser inputs, toda a realidade está em questão. Não é claro quem é humano e
quem é replicant. O ‘‘que’’ é, afinal Deckard, o protagonista ?
BLADE RUNNER parte do romance de Philip K. Dick, ‘‘Os
androides sonham com ovelhas eléctricas?” e vai muito além de ser um prodígio
formal de uma depuração estética memorável - este título de culto do cinema de
ficção científica adensa-se no enunciar de questões de natureza religiosa, filosófica,
científica, delineando dúvidas fundadoras na (in)definição do ser humano: Para
onde vamos e o que nos espera?
SABRINA D. MARQUES
(2014)
escrito para Cineclube de Guimarães
sexta-feira, 2 de janeiro de 2015
2012 / Pedro Jordão e Sabrina Marques | NO FIM SEREMOS TODOS PRINCIPIANTES (sobre 4:44 de Ferrara)
4:44 – no
fim seremos todos principiantes
Sabrina Marques e Pedro Jordão
PJ: Repara como ele começa por nos apresentar
uma situação sem saída enquanto nos segreda que há vários caminhos até ao fim,
todos em falso mas todos diferentes – mesmo no fim do mundo existem escolhas,
lembra-nos. Até porque se há um fim, não é tão certo que haja uma conclusão,
algo que não se pode dizer que exista quando só restam perguntas. Não se reduz
o filme à captação do espírito de um tempo que é radicalmente agora, mas
também por aí passa. E que melhor maneira de reflectir sobre um processo do que
interrompê-lo? "Não recomeces um minuto antes do fim do mundo", diz
alguém.
para LA FURIA UMANA #14
SM: Os olhos não se podem fechar. Na iminência
do fim do mundo não se adormece. Cisco continuará a vigilância : ‘fiel a si
próprio’, jamais interrompe a sua travessia ávida por informação. A corrente
eléctrica nunca se desliga. E como se pudessem contrariar a deriva do corpo,
sobrepõem-se os discursos sintetizados na caminhada de Cisco entre televisores,
tablets, computadores e telemóveis permanentemente ligados, a emitir reflexões
vagas que não aliviam a fome de saber e que, àquela hora, parecem vãs : a sua
capacidade de operar uma mudança sobre a realidade é nula. A consciência da
falta de acesso a qualquer verdade torna-se insustentável – a única
factualidade que se apresenta é a do colapso derradeiro. Abandonados os ecrãs,
Cisco decidirá procurar com os próprios olhos. De binóculos em punho, percorre
janela atrás de janela para perceber como se comportam os seus pares – que
comportamento pode restar ao humano nos minutos que o separam da sua
destruição?
Level 5, Chris Marker, 1997
PJ: O fim chega "com um aviso prévio, mas
sem possibilidade de fuga" e perante o inevitável cessam todas as
estratégias, e por isso todos os gestos são súbitos, imediatos, determinados
pela vontade, pelo medo, pelo desejo ou pelo acaso – certa incerteza até ao
final – e (quase) não parece haver pânico, apenas uma rememoração do que foi
irremediavelmente perdido e uma ou outra inclinação niilista inconsumada – um
pensamento suicida, a tentação do regresso à heroína há muito vencida, mas mais
como expressões de desistência do que de crença na destruição. Tem-se dito por
aí o que dificilmente pode ser dito – que Ferrara pende aqui para uma certa
suavidade. Como se o assalto ao olhar do espectador fosse mais brando, logo ele
que sempre soube ser implacável. Mais certo seria reconhecer que a faca
continua encostada à garganta, mas o olhar que a orienta mudou, é mais
interior, menos assertivo, mas paradoxalmente menos contornável – Ferrara já
não permite que se seja apenas espectador. A violência aqui é outra. Não somos
interpelados sobre os outros, mas sobre nós mesmos. De pulsão em pulsão, não há
nada a não ser o aqui e agora que até agora julgávamos ser um cliché. Ferrara filma a insuficiência do
livre arbítrio, não sem uma certa crueldade, mas não deixa ao mesmo tempo de
filmar a resistência das personagens a essa retratada impotência de controlar
os seus derradeiros momentos. Por isso, num mundo que surpreendentemente parece
continuar a funcionar, as personagens perpetuam ao limite o vínculo ao
quotidiano, insistem em pequenos rituais, como a barba cuidadosamente aparada
por Cisco (porque Skye gosta), o registo das memórias que Cisco escreve (e que
ninguém lerá,) a pintura que Skye vai criando (e que não partilhará com mais
ninguém). A repetição parece actuar como uma melancólica e inconfessada
celebração de uma agora distante normalidade, como se os minutos de uma
contagem decrescente pudessem ignorar o seu destino. E se Cisco ainda parece
obcecado com a informação, com essa ligação frágil a um mundo com fim marcado,
as imagens sobrepondo-se já sem uma cronologia, Skye continua obsessivamente a
criar, sobrepondo camadas de tinta, fazendo e refazendo, adivinhando-se
pontualmente um círculo no que vai pintando, isolando-se do mundo, como se
preparasse um casulo.
SM: 4:44 é o filme francamente contemporâneo – por múltiplas razões, mas também devido uma vocação expansiva que é simultaneamente
inclusiva. Falemos de Chris Marker, que percebeu com auspicioso fascínio a irrupção
tecnológica, celebrando a cibercultura desde os seus primeiros passos - no
cinema dos anos 90 vimos um mundo protagonizado por seres extraordinários, os
cibernautas, a viver uma aventura fantástica de navegação através da
obscuridade do espaço infinito da World Wide Web. Em Level 5 (1997), a
protagonista Laura é programadora informática e a sua criação aperceber-se-á da
impossibilidade de cisão histórica da realidade virtual com o que a precedeu.
Focado nas cidades de Tóquio e de Okinawa, Marker reflecte acerca das
velocidades da expansão urbana, que parecem tentar sobrepor-se às marcas de um
passado que anseia por ser esquecido, uma história colectiva de sofrimento e
destruição decorrentes da participação japonesa na segunda grande guerra. Será
possível sacudir de si a identidade da terra em que se vive, o que se conhece
sobre a história do povo a que pertencemos, e tudo o que se passou antes de
virmos a mundo? Com 4:44, Ferrara responde que não : a rede não é um
lugar autónomo de uma realidade virtual que se oferece como alternativa à
realidade da vida, mas essencialmente um novo modelo de continuação dessa
realidade, um outro palco para a vida tal como ela se conhece. Ferrara venceu
os pudores que ainda restavam acerca da inserção da tecnologia na linguagem do
Cinema, e em 2012, os gadgets foram domesticados, todos os usam e fazem
parte da mobília. A prova está no realismo dessa cena francamente atemorizante,
em que a necessidade de pacificação da consciência de Cisco o leva a mediar por
palavras uma resolução final com a ex-mulher. O virtual já não é um lugar de
espectros, de deambulações sob nicknames, de escapes alternativos... Há
presença no virtual – aquelas pessoas estão lá. A ex-mulher está presente (não
é corpo mas é corporificação, e corresponde a uma identidade concreta). A realidade
da dor de Skye, depois de presenciar esse diálogo, não terá como se atenuar
minimamente porque ela não está lá fisicamente.
O espectáculo da sociedade contemporânea (para
lembrar Guy Debord), a que Cisco dedica os últimos fôlegos da sua vida na Terra,
é uma regressão memorial através da informação acumulada, que justapõe dados
biográficos a cada uma das imagens jamais apreendidas por si, reclamando-as em
pertença equivalente. O mashup absoluto, o gesto da derradeira simbiose
entre tudo o que vive, com vocação de infinito. Todos os seres e gerações
humanas se dissolvem uns nos outros, em perfeição, em totalidade. Todas as
imagens acumuladas no arquivo da mente. Todos os eventos presenciados em todos
os ecrãs justapostos numa representação absolutamente contemporânea do modelo
de construção da memória individual e colectiva, inserindo a experiência
singular num devir histórico em acção.
Assim, explica o Dalai Lama num ecrã, a era da
informação é a era da responsabilização : o acesso disseminado ao saber faz
corresponder a cada qual um papel activo de inserção na hiper-narrativa
totalizante da natureza. Indica-nos que, a partir do momento em que sabemos o
que se está a passar, a acção individual passa a ser responsável por tudo,
todas as criaturas e causas implicadas no planeta Terra. Como se ouve no filme,
não há um culpado a apontar – no fundo, somos todos porque “estamos todos no
mesmo barco”. Resgatar a dimensão espiritual no Homem, explica o Dalai Lama,
passaria por revitalizar o “sentido de partilha e de comunidade”. Não somos
capazes de ser felizes apenas connosco, e a expansão dos sistemas de
comunicação é reflexo desta necessidade (Cisco não cessa de procurar respostas
fora de si, junto de gurus, de amigos, dos vizinhos...). O Um não é a unidade
basilar – a união é a unidade basilar. O Um é o Todo, como explica o dragão que
come a própria cauda. A História de toda genealogia humana que vai acabar é a
árvore que se corta. (Com o colapso do mundo marcado para as 4:44, a narrativa
humana cessará e com ela todos os seus vestígios. Agora situados no cúmulo do
progresso material, e no imediato momento seguinte, o Nada... )
PJ: Quando Cisco derruba a árvore no seu sonho,
o machado está na mão de todos. Cisco chega a dizer que ninguém tem culpa, mas
está sempre a apontar culpados e o sonho revela que não se reconhece a si mesmo
o direito à absolvição. Há uma acusação insistente, que corre de ecrã em ecrã,
entre entrevistas antigas e conversas de despedida – fomos avisados. E pelo
meio, um paradoxo: aponta-se muito a inutilidade das conquistas prévias,
enquanto se afirma a fé no que foi destruído. Mais do que nunca, torna-se
evidente que os ecrãs são mais do que meros transmissores, antes actuam como
superfícies reflectoras, fragmentos de quem os olha, e naquele momento Cisco já
não pensa tanto o mundo como se pensa a si mesmo. E no entanto, o seu conflito
interno, ao qual não é alheia a voracidade com que ainda tenta aceder ao mundo,
tem um contraponto na placidez de Skye, que parece ir vivendo as últimas horas
como uma expiração. E para Cisco, Skye é o centro do vórtice – é o lugar a que
sempre retorna, a amarra, a última paragem, uma zona de estranha acalmia. Como
se tivesse desvendado primeiro um segredo prestes a ser revelado a todos.
SM: É claro que 4:44 assenta
irredutivelmente numa negríssima fundação de sarcasmo. Porque, tal como Cisco e
Skye, todos nós sabemos acerca da inevitabilidade de morrer mais cedo ou mais
tarde – a única diferença é que eles sabem a hora exacta. Assim, parece
ridícula a vontade de Cisco de ser certeiro no modo de gastar o último tempo,
valorizando-o apenas quando ele se apresenta na eminência de se esgotar. Mas
não é verdade que ele está sempre na eminência de se esgotar? Cisco
questiona-se acerca do suicídio: não seria apenas uma diferença de horas? É um
facto. Mas por qualquer razão inominável, no fundo ainda se mantém a espera – o
ser está preso à vida. O corpo humano tende para a sobrevivência, e nem a
consciência da morte o demove do projecto de se manter vivo. Esta concentração
de tempo é o espaço da crença (“- Vai ficar tudo bem” diz Skye, “- E se eles
estiverem errados?”, pergunta um amigo). A dúvida acarinha-se como último
reduto e a finitude visível do corpo humano – que é tanto "vida
morredoura” como “morte vivente”, como escreveu Santo Agostinho – depressa se
suplanta pelas distintas adopções individuais da mesma estratégia de
resistência. Um amigo de Cisco partilha a sua efabulação delirante acerca de um
corpo renovado por chegar, um corpo com asas que arranca da superfície da terra
até ao céu. Perante a eminência da morte, todos os paraísos são possíveis, todo
o tipo de superações do corpo e de reconfigurações do espírito são válidas
desde que dentro daquele que é, se guarde alguma conjugação do verbo “existir”. “Para quê deixar alguém
mandar em ti se vais morrer?” – A interrogação de Cisco ultrapassa as fronteiras
do ecrã até cada um dos espectadores. Em consideração está a medida Tempo, e a
universalidade do seu valor.
PJ: Falaste em ‘espera’, e eu falei em ‘expiração’.
Há por ali dois modos distintos de habitar o tempo, já foi insinuado mas tem
que ser sublinhado. Cisco tenta cumprir o que resta do mundo, Skye já o deixou,
interrompendo a partida apenas perante o intolerável – não o fim do mundo, mas
a ameaça de perda do amor de Cisco. O amor (e Ferrara não disfarça que o filme
também o declara) é para Skye um veículo mais definitivo do que a morte, uma
porta de entrada para um outro plano. "Estamos juntos, vamos juntos",
diz em jeito de prece pouco antes do nada, os dois deitados e unidos no meio de
um círculo mais-do-que-perfeito – o Ouroboros, o dragão em círculo comendo a
própria cauda, símbolo ancestral de transformação perpétua, de eterno retorno,
sabotagem implícita da morte.
SM: A frase de Cisco ‘já estamos mortos’, e a de
Skye ‘já somos anjos’, são contra-sensos semânticos. Relembram-nos como a
partir do momento em que a consciência da morte começa a agir sobre os corpos,
estes já não são vivos, já são mortos-vivos.
PJ: Ou super-vivos, como se o fim fosse
inevitavelmente uma sublimação. (Já tínhamos tido, em Mary, uma
personagem de Ferrara a retirar-se do mundo e fazendo da espiritualidade um
caminho, mas não assim, com esta fome pelo outro, com esta carnalidade, tanto
nos momentos de encontro entre os corpos de Skye e Cisco como na constante
troca de roupa, enfim, de pele, que Skye executa como um ritual de
transformação, de preparação para um novo ciclo.)
SM: Simultaneamente, descreve-se a sofreguidão de
valorizar as ligações humanas, como na superficialidade desse momento em que
Skye abraça o rapaz vietnamita e exclama um “Obrigada por te ter conhecido”.
Obviamente, não é porque lhe sabe o nome ou lhe emprestou o computador que já o
conhece – aliás, porquê querer saber sobre ele enquanto pessoa agora, quando
até aí a sua presença equivalera a um serviço?
PJ: Ou quando Cisco, do cimo do seu terraço,
exige aos desconhecidos que passam em baixo na rua que respeitem o corpo sem
vida do suicida respeitando a sua última decisão, não lhe tocando e não lhe
cobrindo o rosto. O que ali se recusa é o eufemismo, é tarde demais para isso,
como provou aquele homem que se adiantou à hora. O que também ali se prova é
que antes, como agora, o mediador mais determinante de todos não é um
dispositivo electrónico mas o olhar do outro.
SM: 4:44 também é um filme sobre o Cinema. O caudal de
imagens a suceder-se defronte dos olhos confirma a ditadura contemporânea do
estímulo óptico. A “super auto-estrada da informação” – a expressão é de uma
das personagens secundárias deste filme, Al Gore – corresponde a um museu
imaginário composto pela memória da civilização. Godard ensinou-nos acerca da
complementaridade na multiplicidade através das suas Histoire(s): o
filme é um projecto utópico que, na sua perfeição última, seria absoluto,
compreenderia em si a totalidade. Tal como esse último instante de vida,
descrito pelo guru zen, em que todas as imagens possíveis se dissolveriam entre
si em simultâneo, numa porta para a compreensão.
Será possível a salvação pelas imagens? Godard
volta sempre a esta questão e, com Film Socialisme, insere-nos na era da
representação; as personagens não se cansam de fotografar e filmar, e o filme
multiplica-se entre infinitas estéticas através das opções que a
contemporaneidade disponibilizou. As dinâmicas da relação do olhar do
realizador perante as novas possibilidades da técnica são activas e
contemplativas : o realizador que olha para a câmara (que selecciona através
dos seus limites o que deseja ver), volta o olhar para aquilo que a câmara viu,
apercebendo-se das especificidades do contributo da máquina. O papel do
realizador é o de ordenar o caos, de circum-navegar através da infinitude deste
mar de imagens (uma rota fisicamente descrita em Film Socialisme). Como anotou David Phelps acerca de Film Socialisme,
“Godard ignora voluntariamente a diferença entre cinema e fotografia; nunca se
cansa de repetir, desde Longe do Vietname, que duas fotos bastam para
fazer uma montagem, isto é, cinema.” 4:44 é também um filme sobre
montagem, que problematiza a responsabilidade (da arte) de criar no meio do
excesso. Na sua busca por uma pureza primordial, o
filme professa uma réstia de fé na representação – esta resposta chega através
de Skye, que se dedica de corpo inteiro à representação manual (contra todas as
informações possíveis de ser capturadas ou difundidas pelas máquinas) : de mãos
submersas no mar de cores, de contacto com a matéria-prima em bruto, Skye
progride entre as manchas cromáticas que se vão mesclando, num ensaio até ao
negro - ventre de onde faz nascer a sua única figura. A figura perfeita.
PJ: E no fim o branco, que se é um lugar onde nada existe, é também um lugar onde tudo pode vir a existir.
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