Mais humanos do que os humanos*
sobre
BLADE RUNNER de Ridley Scott (1982)
(*o slogan da
Corporação Tyrell é: “Replicants genéticos - mais humanos do que os
humanos.)
“O destino
das figuras é transfigurar-se.”
JOSÉ-AUGUSTO MOURÃO
Estamos em Los Angeles, em 2019. Neste futuro apocalíptico, a Terra e a raça humana sofreram as consequências da guerra nuclear e novas colónias fora deste Mundo foram criadas para destino das migrações humanas. A Terra é agora um submundo sombrio, onde a paisagem hi-tech de néons e arranha-céus jaz como uma promessa incumprida, enublada pela poluição e oprimida por uma vigilância permanente. Aqui, os animais foram extintos e bio-engenheiros marginais enriquecem com o negócio da criação artificial de espécies para ostentação, ou constroem componentes sintéticas para humanoides. Numa atmosfera de incerteza, os humanos são o passado e são o futuro. Entre os humanos caminham indistintos os replicants, uma nova raça de androides bio-robóticos geneticamente desenhados pela Corporação Tyrell com propósitos militares e de exploração do espaço, em aspecto idênticos a um jovem adulto humano mas fisicamente aperfeiçoados. A característica psicológica central de um replicant é a sua falta de emotividade, passível de ser medida por um dispositivo Voight-Kampff - método que combina questões de análise empática e máquinas de medição fisiológica - e que é a única forma de distinguir um humano de um replicant, dadas as similaridades. Encontrar Roy, Pris, Zhora, Leon, Hodge e Mary, os seis replicants modelo Nexus-6 em fuga na Terra, onde são ilegais depois de um sangrento motim no espaço, é a tarefa protagonizada por Deckard (Harrison Ford), um blade runner, oficial especializado na sua eliminação. Estes androides são modelos Mental-A, ou seja, a capacidade intelectual é, pelo menos, igual à do seu criador - como exemplifica o caso do replicant Roy Batty e do seu ‘‘pai’’ Tyrell. Incorporam, por isso, um mecanismo de segurança que determina que a extensão máxima da sua vida seja de quatro anos apenas, impedindo que a inteligência artificial desenvolva mecanismos autónomos de cognição emotiva e de subsequente imunidade ao teste.
Estes replicants
herdam a mente artificial de HAL 2000, o malévolo super computador que em 2001
- ODISSEIA NO ESPAÇO (Stanley Kubrick, 1968) evocava já o problema da autonomização
da inteligência artificial: a sua evolução poderá culminar na revolta da
criação contra o criador, como o monstro nascido das mãos do Dr. Frankenstein.
O que significa, afinal, a sua famosa exclamação ‘‘it’s alive” ? Qual é o valor
ontológico da vida artificial? Este é o conflito central de BLADE RUNNER. A
qualidade que distingue estes androides dos predecessores é terem recebido
implantes de memórias relativas a uma vida prévia que não existiu. Um
passado-simulacro sustentado por fotografias falsificadas alimenta emoções
frágeis nestes replicants e bloqueia
inatamente uma consciência acerca da própria artificialidade (por exemplo, em
Rachael) e, por conseguinte, de uma extinção precoce. Ou seja, estes replicants não saberiam o que eram se
isto não lhes fosse revelado exteriormente. Pris (Daryl Hannah), cita Descartes:
“Eu penso, logo existo”. Logo, todas as dúvidas: Será possível tratar toda a
informação que compõe um ser humano como software a ser implantado em hardware?
Porque coexistem em simultâneo no ser a consciência da vida e da própria
finitude desta? A revolta dos replicants, os super-homens, afinal rima com a revolta dos homens. Apesar do
progresso, a decrepitude é inevitável : é a dança macabra, essa derradeira
incapacidade da existência de aceitar a morte.
No entanto, nesta
narrativa distópica a lei terrestre não protege os replicants porque não
os considera humanos. Espectadores diários das velocidades da evolução, aqui
questionamos realidades hipotéticas nada longínquas: com que princípios
tratar seres orgânicos, feitos à imagem, semelhança e escala do ser humano?
Será legítimo? BLADE RUNNER convida a avaliar o
conceito de Humanidade. Um clima de paranoia constrói-se ao estilo noir,
entre incertezas, perseguições e a opressão constante de um controlo
corporativo e policial. Os olhos são um leit-motif : quando as memórias
podem ser inputs, toda a realidade está em questão. Não é claro quem é humano e
quem é replicant. O ‘‘que’’ é, afinal Deckard, o protagonista ?
BLADE RUNNER parte do romance de Philip K. Dick, ‘‘Os
androides sonham com ovelhas eléctricas?” e vai muito além de ser um prodígio
formal de uma depuração estética memorável - este título de culto do cinema de
ficção científica adensa-se no enunciar de questões de natureza religiosa, filosófica,
científica, delineando dúvidas fundadoras na (in)definição do ser humano: Para
onde vamos e o que nos espera?
SABRINA D. MARQUES
(2014)
escrito para Cineclube de Guimarães