quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

2016 / Mizoguchi, cineasta das mulheres

Mizoguchi, cineasta das mulheres

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Street of Shame (Mizoguchi, 1956)

Kenji Mizoguchi nasceu em Tóquio, a 16 de maio de 1898. Morreria precocemente, aos 58 anos de idade, celebrado como um dos mais emblemáticos nomes do cinema japonês. Sobre o seu túmulo, o produtor Masaichi Nagata mandaria inscrever o epitáfio: "Aqui jaz o maior cineasta do mundo". Realizador e argumentista, trabalhou na era dos estúdios do cinema japonês, do mudo aos talkies, do preto-e-branco à cor, realizando a ritmo regular entre dois a três filmes por ano. Para lá de um inconfundível estilo marcado por longos travellings, jogos de sombras e simetrias interrompidas, Mizoguchi é, acima de tudo, o cineasta das mulheres. Entre dramas alicerçados na resistência das suas protagonistas femininas, constrói críticas às desigualdades da sociedade patriarcal que persistem no Japão do seu tempo. Se, apesar das suas claras influências, os temas e motivos são essencialmente japoneses, o permanente afecto pela tradição preserva uma visão tão manifestamente progressista que ‘‘se não fosse japonês, os seus filmes seriam provavelmente rotulados de anti-japoneses’’, como reparou Tag Gallagher.
Rever Mizoguchi hoje permite retroceder até às fundações de um Japão antigo, ainda fechado ao Ocidente, distinto daquele que a globalização nos traz. A revisitação tem ao dispor muitos instrumentos para enquadrar um dos mais fundadores pilares da história do cinema: pensar sobre Mizoguchi hoje é mapear migrações entre a sua vida e o seu cinema mas é, também, entrar num fluxo de grandes frases, grandes ideias e grandes artistas, críticos e académicos que têm, ininterruptamente, contribuído para o estudo de uma influência que permanece incontornável. Em 1975, o grande realizador da geração seguinte, Kaneto Shindô, dedicaria a Mizoguchi o retrato The Life of a Film Director, documentário que procura pistas junto dos vários colaboradores. Destes testemunhos, soma-se um coro: Kenji Mizoguchi era um homem exigente e não abdicava de controlar tudo ao pormenor, até o tamanho dos botões, afirma Takako Irie, actriz regular de Mizoguchi. Apreciador de verdadeiros artistas e artesãos, Mizoguchi usufruía dos processos conjuntos implicados em cada filme e mantinha colaborações regulares. Entre outros, repetem-se os nomes da actriz  Kinuyo Tanaka ou do argumentista Yoshikata Yoda, braço direito do realizador e autor de inúmeros guiões de Mizoguchi, entre os quais Elegia de Osaka, Irmãs de Gion, Conto dos Crisântemos Tardios, The 47 Ronin, Cinco Mulheres em Torno de Utamaro, Menina Oyu, The Lady of Musashino, Oharu, Ugetsu, A Geisha, Sansho, The Woman in the Rumor, Os Amantes Crucificados ou Yang Kwei-Fei.
Mizoguchi é um realizador esquemático - de tal forma, que facilmente nos parece que os filmes se entre-respondem. Tipicamente, um melodrama seu começa por largar-nos dentro da agitação das ruas, onde conhecemos o palco do que se seguirá. Só depois, entre os movimentos anónimos do bulício urbano, aí encontramos a medida individual do enredo (metonímica) na personagem principal. Tão barroco quanto minimal, é possível reconhecer rapidamente as marcas de um estilo minucioso que se distingue a cada plano, cada filme, cada genérico. Apesar da profunda originalidade de um cinema que, pela sua frescura, se popularizaria junto das audiências ocidentais, as variações deste corpo de trabalho desdobram-se num leque de influências rigorosamente medidas que, alicerçadas na tradição pictórica japonesa, também se deixaram influenciar por estéticas europeias como o neo-realismo italiano, o expressionismo alemão ou o naturalismo francês.  
A questão da arte e do estudo necessário para a apurar são temas recorrentes, exemplificados de variadas formas: no treino rigoroso das geishas de Os Músicos de Gion, na perícia musical ‘‘à Edo’’ de Menina Oyu, no drama do actor desinspirado em Conto dos Crisântemos Tardios, entre outras. Celebrar a arte e a honra à tradição é, por conseguinte, condenar tudo o que é falso, decadente e descuidado e, talvez por isso, menos japonês: as prostitutas que são uma versão insultuosa das geishas em Rua da Vergonha, os falsos tecidos brocados que surgem em Os Amantes Crucificados e são vendidos ao preço de verdadeiros em Irmãs de Gion ou a patética imobilidade do pai de Os Músicos de Gion, que aceita dinheiro de mulheres. Na verticalidade destas histórias, só há uma forma de falsidade permitida: a estratégia feminina. Como se ouve em Os Músicos de Gion, ‘‘uma mentira de geisha não é uma verdadeira mentira.’’A questão da ‘‘guerra dos sexos’’ está no centro permanente de um cinema concretamente construído sobre incontáveis planos de túneis, passagens, entradas e saídas, como um projecto contíguo de emancipação feminina que perpassa os vários enredos. É do interior da trincheira das mulheres que o realizador as defende, esquematizando estas disputas de poder em imagens que, apesar da força moral das protagonistas, retratam contextos de clausura, opressão, aprisionamento. De acção enquadrada por um sistema arcaico, ainda assim as jovens geishas resistem ‘‘na dignidade de mulheres da nobreza’’ (ouve-se em Rua da Vergonha), astutamente manobrando os seus inimigos, os ‘‘homens sempre iguais’’ (diagnóstico de uma das Irmãs de Gion). Estes retratos íntimos do feminino mostram como a solução das mulheres para a sua condição se traduz, através dos tempos, num espírito de irmandade que, sistematicamente, funciona como uma consciência de classe, voltada para a ascensão social e para a luta por melhores condições.  
Alusiva a distintos séculos da história do Japão, a obra de Mizoguchi funda, em subtexto, uma genealogia da sujeição do feminino e, em simultâneo, um retrato da sua resistência ancestral. Um exemplo é o da desigualdade no castigo pelo adultério verbalizada pelas personagens do filme Os Amantes Crucificados, que, situado no Japão do séc. XVIII, dá a ver como, contrariamente aos homens, as mulheres que mantinham casos extraconjugais eram injustamente perseguidas e crucificadas. Até num casamento combinado como o descrito em Menina Oyu, são as mulheres a orquestrar as condições em que o amor do homem se expressará. E são as mais jovens geishas de Os Músicos de Gion a reivindicar o direito de não serem forçadas a deitar-se com os homens que não lhes agradem. Este projecto revolucionário rebenta com o continuum da História na inesquecível ousadia da geisha que morde violentamente o seu agressor, uma cena caricata que nos lembra de um episódio vincado no próprio Mizoguchi: este homem do mundo que chegou aos jornais por ter sido esfaqueado por uma geisha, permaneceria sempre fiel ao seu amor pelas mulheres. E, um dia, disse sobre si e sobre o cinema: ‘‘Os filmes não são feitos por decisão consciente mas por paixão interior.’’

SABRINA D. MARQUES
para Medeia Magazine


segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

2017 / John Berger, Viajante no Tempo

John Berger, Viajante no Tempo





Vi um autêntico Viajante no Tempo e o seu nome é John Berger. Em 1972, criou um programa de televisão chamado Ways of Seeing, e lançou-nos em direcção ao passado para melhor nos fazer ver o presente. Sem termos de sair de casa para ir ao museu, sem precisarmos de ter dinheiro suficiente para viajar ou para possuir belos livros de estampas ou para comprar os quadros que estávamos a ver, com a concentração de uma aula entrávamos, à velocidade dos zooms, dentro dos quadros mais emblemáticos da história da arte. O televisor, ordenado pela voz de John Berger, ligava-se para interromper a imobilidade geral da nossa sala-de-estar e, sucessivamente, destruía as molduras das obras-primas de grandes mestres. Na sua sábia paciência, Berger sublinhava com lances certeiros a obra decisiva de Benjamin, Obra de Arte na Era do Progresso Técnico, e explicava como, com o surgimento da câmara, podemos ver coisas que já não estão lá.  Se esta câmara, fotográfica ou de filmar, nos permite viajar até ao passado, este Viajante deixou a sua marca no futuro. De forma precursora, soube perceber como não é só a Experiência da obra de arte que pode ser democratizada pela reprodubilidade técnica - mas também o Discurso em torno da obra de arte - aqui, a arte chega aos ecrãs domésticos enquadrada por um princípio de educação artística. Hoje, graças à sua visionária vitalidade, podemos saltar de youtube em youtube, em busca das multifacetadas opiniões que partilhou em diversos programas televisivos, emissões de rádio, entrevistas e até webshows. Berger foi muito além da letra: quantos académicos ao seu nível assim se colocaram fora dos livros e dos artigos, sem receio do ridículo, e tanto partilharam no espaço público com a missão de abrir cabeças em massa?

Nunca duvidei que John Berger tivesse vindo do futuro. E, ao longo destes anos todos, também nunca o vi alhear-se de um autónomo sentido de dever: usando todos os meios ao seu dispôr, escolheu tomar nas mãos as rédeas pelo seu próprio tempo. A diferença entre um mero académico e um verdadeiro mestre é que um fala para se ouvir e o outro fala para ser ouvido - e, na inesquecível calma da sua voz, Berger cativou uma audiência crescente porque se dirigiu sempre ao seu igual: o humano ancestral, qualquer um de nós habituado a aprender por narrativa. Para falar de estética, de semiologia, de teoria da representação, de semiótica, de história ou de mitologia, contou-nos histórias para as compreendermos. Recordamos como Berger dá início o seu ensaio-visual On Time (1985), narrando a demanda do jovem pelo sítio onde nunca ninguém morre e ocorre-nos que o seu próprio percurso parece esboçar-nos uma resposta possível: a permanente juventude de pensamento é o lugar onde nunca ninguém morre. Enquanto o olhar deste Viajante nos souber a tão jovem, tão verdadeiro, tão original, percebemos que há forças que superam o Tempo - e sucessivamente nos confiaremos aos ecrãs para voltarmos a ver o mundo pelos olhos de John Berger.


Sabrina D. Marques