A SIMPLICIDADE ENGANADORA DO PARANGOLÉ
De onde surgem os
parangolés, o ‘‘exercício experimental de liberdade’’ de Hélio Oitica, segundo
palavras de Mário Pedrosa ?
Estamos no Brasil em
1964, acaba de ser instaurada a ditadura militar que só acabaria em 1985.
Alinhado com o movimento tropicalista, o mais revolucionário movimento de regeneração
da esfera artística brasileira da década de 60, Hélio Oiticica mantém a postura
de artista militante, crítico da ditadura política em vigor no país. O jovem
movimento exprime-se com maior expressão pela música, onde as letras evocam a
construção linguística do concretismo. Como uma força contracultural, o
tropicalismo inventa uma forma de neo-concretismo e, por via da paródia e do
deboche, une a cultura erudita e a influência das novas vanguardas artísticas a
um ímpeto de resgate das raízes da arte popular brasileira.
A partir de meados dos
anos 50, os lugares da tradição são pontos-de-partida para abordagens
artísticas de carácter colectivo que, pela denúncia e pela agitação, procuram
participar na transformação da sociedade. É neste lastro da dissidência que
Hélio Oiticica constrói a sua obra, aí firmando uma constante oposição política
às tendências massificantes que o capitalismo importa para os panoramas
cultural e artístico. E será a sua marginalidade a aproximá-lo das favelas em
1965, de onde lhe chegará a inspiração para aquela que viria a ser a mais
fracturante e emblemática das suas obras – os Parangolés – onde está presente a
qualidade lúdica da arte popular que os tropicalistas não perderam. A
simplicidade aparente dos Parangolés tão mais depressa se dissipa quanto sobre
eles se reflectir – até ao fim dos seus escritos, o próprio Oiticica nunca
deixou de se dedicar à tarefa de deslindar os propósitos da sua misteriosa
criação.
1. PARANGOLÉS AO RITMO DO SAMBA
“E os que foram vistos a dançar foram
tomados por loucos pelos que não ouviam a música.”
FRIEDRICH NIETZSCHE
1.1.
DESINTELECTUALIZAÇÃO PELA DANÇA
O interesse de Helio
Oiticica pela dança surge, segundo o próprio, como "uma necessidade
vital de desintelectualização, de desinibição intelectual, da necessidade de
uma livre expressão". É entre os ritmos do samba e as cores velozes,
que o pensamento se evade e a ''verdade'' pelo Parangolé se encontra. Experimentando com
materiais vários - que variavam entre tecido, borracha, tinta, papel, vidro,
plástico, corda, palha - Oiticica cria os Parangolés, capas que se revelam
através do movimento. Só assim, dependentes da literalidade da vivência,
mostram plenamente as suas mensagens, formas, sons, grafismos e textos. Quando
estão desabitados e desactivados, os Parangolés não passam de sacos informes de
tecido mas, quando vivenciados são, ao limite, lugares de evasão transformadora.
1.2.
PARTICIPANTE-ESPECTADOR
Para o artista, a
percepção de imagens em fuga, informação desconexa e veloz, transforma a dança
num tempo sensorial por excelência. Consciente de que aquele que dança é ao
mesmo tempo espectador de si próprio e do seu redor em mutação, Oiticica
propõe-se a "dar ao público a chance de deixar de ser público espectador,
de fora, para participante na actividade criadora".
Confundidos os papéis
entre criador e espectador, Oiticica enfatiza o processo de criação, fazendo-o
coincidir com o tempo de exposição da obra. Difícil de categorizar, esta obra
é “antiarte” por excelência, definição do próprio Oiticica. De facto,
princípios de performatividade, de realidade expandida, de encadeamento da obra
com o espaço público, testemunham a influência que movimentos como o Grupo
Fluxus ou Marcel Broodthaers, seus contemporâneos, têm sobre a sua obra.
1.3. UMA REALIDADE EM
QUESTÃO?
Com o Parangolé,
Oiticica convida à experiência de se vestir de cor como uma libertação que,
longe da postura estática de uma atitude meramente contemplativa, produz uma
‘‘maravilhosa sensação de expansão”. Quando a interactividade da obra é tal que
é necessário que o participante a vista para que ela efectivamente exista,
em que moldes fazer nascer o espaço para que esta situação aconteça?
De facto, imaginar o
dinamismo rasgante e colorido destas peças numa performance de samba dentro da
galeria é quase tão improvável hoje como foi então. De tal forma que, em
Janeiro de 1965, Hélio Oiticica seria expulso de uma mostra de arte no Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro, por levar consigo habitantes da Mangueira (favela
no Rio de Janeiro) vestidos com Parangolés. Aí se pode comprovar como a crítica
que fazia tinha fundamento – a elitização da arte era uma realidade no Brasil
da época. A questão lança-nos para os dias de hoje, em que pouco parece ter
mudado – os circuitos elitistas da produção e exibição artísticas não estão
ainda por derrubar?
Com o desaparecimento
do conceito de ‘‘exposição’’, desajustado ao falar de Parangolés, surge o
problema da criação de espaços livres para a participação criativa do
espectador (como um co-autor), como o objetivo de “dar ao indivíduo de
hoje, a possibilidade de 'experimentar a criação', de descobrir pela
participação, esta de diversas ordens, algo que para ele possua significado."
Efectivamente, os Parangolés constituem
uma das várias aproximações de Oiticica a uma nova concepção que procura
integrar o ser humano na obra de arte, confundindo vida e arte. Com a morte do espectador chega o nascimento do
participante.
2. CORPOS TOTAIS
2.1. ARTE MARGINAL,
ARTE INCLUSIVA
“Parangolé é a antiarte por excelência;
inclusivé, pretendo estender o sentido de ‘apropriação’ às coisas do mundo com
que deparo nas ruas, terrenos baldios, campos, o mundo ambiente enfim (...)”
HÉLIO OITICICA
A propósito de uma
colaboração artística, Hélio Oiticica acompanhará os colegas Amílcar de Castro
e Jackson Ribeiro à Escola de Samba Estação Primeira, no morro da Mangueira. Da
experiência fundadora de envolvimento com esta comunidade, nascerão os Parangolés,
nome que evoca um termo utilizado para
obter novidades, na expressão informal: “Qual é o parangolé?”. É na marginalidade dos morros, lugar onde a
sobrevivência é uma luta do dia-a-dia, e onde não há espaço para contemplações,
que Oiticica se deixa contaminar pelos mais basilares movimentos da vida,
acabando por criar uma obra que precisa de ser integrada pelo corpo humano.
Deste princípio de não-separação entre vida e arte, surge a tentativa de
sublinhar as potencialidades do indivíduo enquanto ser criativo em reinvenção
constante, livre, mais lúcido e activo enquanto agente de intervenção na
sociedade.
Quando a intenção da
arte assim se centra no corpo e comportamento humanos, é do mundo das coisas
que se foge negando, por conseguinte, o objecto artístico como um produto de
consumo do mercado capitalista. E, por isso, acessível a todos. Hélio Oiticica
procura derrubar as limitações que identifica numa arte hierarquizada,
elitista, onde as possibilidades da experiência são amputadas por um processo estanque
de estímulo-reacção e a novidade é sabotada pela imposição de padrões
estéticos. Assim, Hélio Oiticica lança-se para lá das convenções em direcção a
novas formas de promover o retorno do espectador-participante a si mesmo. A
qualidade mais distintiva desta obra é a de não se focar apenas na experiência
– mas procurar produzir efeitos que se prolonguem para lá dela.
2.2. O SUPRASSENSORIAL
E A DANÇA
‘‘O Eu chega de um estado de alerta puro em
relação ao estado de ser.”
ALDOUS HUXLEY in
As Portas da Percepção
Oiticica desenvolve o
conceito de ‘‘Suprassensorial’’ por volta de 1967, procurando expandir as
possibilidades sensoriais no espectador-feito-participante até atingir uma
‘‘suprassensação’’, semelhante às proporcionadas pelas drogas alucinogénicas.
Segundo Oiticica, expandir a percepção e a consciência, permitiria a
“descoberta do seu centro criativo interior, da sua espontaneidade expressiva
adormecida, condicionada ao quotidiano”. Conhecer esta suprassensorialidade
proporcionaria ao indivíduo uma mais clara descoberta de si o que, por
seguinte, influiria no seu comportamento. Um dos meios possíveis para atingir
este estado de expansão seria, por exemplo, através do samba, com os seus
muitos ritmos, cores e movimentos.
2.3. DANÇA E ANCESTRALIDADE
‘‘Deixando-se impregnar pelos movimentos do
corpo, a consciência do corpo abre o espaço da consciência e do pensamento ao
corpo e aos seus movimentos.”
JOSÉ GIL in Movimento
Total, O Corpo e A Dança
Na contemporaneidade, os gestos humanos
como meios de chegar a fins dissipam-se quando é pela dança que o corpo age. Porque
se o gesto utilitário do corpo tem uma estrutura
significante intrínseca, a dança é, pelo contrário, a procura de um corpo sem fim. O gesto dançado é
misterioso, mudo, imperscrutável. Lembramos de
Nietszche e dos devaneios ditirâmbicos de Diónisos, pulsares de juventude, de sexo e de êxtase que levam o corpo para perto de uma
sabedoria sobre si e para mais longe da sua consciência de finitude. Como lembra Laurence Louppe em Poética da Dança Contemporânea, “Nietzche previu uma arte sem
representação que estaria mais próxima de uma vontade ou de um desejo puro sem
representação: um ‘querer sem fundo’, afirma n’O Nascimento da Tragédia”. Um corpo dionisíaco é um corpo perdido,
um corpo num limbo entre os esgares do homem-animal e os primeiros vestígios de
civilização. Tentar apontar uma origem para a dança seria evocar um lugar
ancestral de construção da linguagem humana, onde se ensaiam os primeiros
signos através dos gestos, num primeiro esboço do corpo-sujeito. À ancestralidade germinal da dança liga-se portanto
uma imediata ideia de naturalidade, de uma metamorfose espontânea de um
corpo em improviso. Transversal
a todas as culturas, a expressão pela dança é a maior afirmação da vida.
2.4. DANÇA CONTEMPORÂNEA:
O EU
“Na dança contemporânea existe apenas uma verdadeira dança:
a de cada um (como reconhece Isadora Duncan em ‘The Art of the Dance’, ‘a mesma
dança não pode pertencer a duas pessoas’).”
LAURENCE LOUPPE in Poéticas da Dança Contemporânea
A dança contemporânea, que surge
pelos fins do séc. XIX desenvolvendo-se ao longo do século XX, procurará
regressar a esta força. À dança contemporânea corresponde uma revolução do corpo
do bailarino, marcada pelo despojo, pela ênfase do essencial. Liberto das
convenções narrativas das coreografias clássicas, o bailarino procura uma
identidade onde as suas forças e o seu pensamento são os primeiros agentes
responsáveis pela criação. Esta recusa dos figurativismos do
passado está profundamente ancorada numa desintegração dos movimentos do corpo,
que procuram destruir a figura humana - O corpo
amputado de Adorno, está presente e, com ele, a vontade de romper com os
limites do corpo e com as linguagens lineares. O bailarino quer ser corpo sem
alfabeto : os gestos não se sucedem como frases aptas a ser lidas, mas
acontecem em mistério, procuram a polissemia. Para o bailarino, um projecto de
aprofundar o próprio corpo. Para Ida Rolf, a visualização das Ideias que fluem
no corpo é um exercício criador do ser-corpo, indispensável à dança
contemporânea – as ideia-em-devir no corpo despertam, num sentido mallarmiano,
a consciência deste. Na dança contemporânea, o domínio
físico das estruturas canónicas da dança não está de modo algum relacionado com
as possibilidades do bailarino de atingir uma nova expressividade, pois, como
aponta Laurence Louppe “é a plasticidade do espírito que torna possível um
movimento.’’ Não é por isso de admirar que tantos que tantos dos alicerces da
dança contemporânea cheguem de contributos de nomes que não eram nem
coreógrafos nem bailarinos profissionais, como François Delsarte.
“A dança moderna é um ponto de vista”
SELMA JEANNE COHEN
2.5. DANÇA, SIGNIFICADOS
INFINITOS
Recordamos a frase de José Gil – “vencer o peso, tal é o objectivo
primeiro do bailarino” – onde se evoca a contínua transformação do corpo do que
combate as leis da física que o dominam, que lhe dão resistência e força. Uma
ideia bela, que nos situa perto da ancestralidade da dança, qualidade
exclusivamente humana, e nos recorda do continuum
do seu esforço que, em simultâneo, é processo e pesquisa ainda hoje. Ao falar
da coreógrafa e bailarina contemporânea Trisha Brown, Laurence
Louppe evoca exactamente a sua “incidência do peso do corpo”, de uma ‘‘nova
poesia do peso ao qual todo o sistema gravítico (corpo e terra) se
encontra associado”.
Merce Cunningham é um nome central na
passagem da dança contemporânea para a abstracção e de um trabalho radical de
rejeição das formas miméticas, das imagens, das sequências, dos símbolos e do
expressionismo que dominava a dança moderna até aí, pondo a dança ao serviço da
expressão das emoções. Contra um princípio de sublimação do mundo interior pela
exterioridade do movimento, o gesto radical de Cunningham livra-se de todas as
gramáticas. A introdução do acaso, a decomposição dos movimentos e uma rotura
da coordenação coreográfica reúnem-se numa técnica que autonomiza os gestos e
modifica a figura. Cunningham procura atingir o vazio, o lugar do movimento puro, para assim retornar a um
grau zero da arte e da linguagem – existir sem referente, rejeitar a
necessidade da descodificação por parte daquele que assiste.
Também em Pina Bausch, outro nome
indispensável da dança contemporânea, não há leituras fechadas. Pode “ver-se
algo e também o seu contrário”, disse a coreógrafa acerca daquilo que José Gil
identificaria como uma ‘’lógica do paradoxo’’. Abrem-se os gestos mas o
pensamento fica por abrir. Se a dança é uma linguagem de interpretações, as
múltiplas possibilidades evocadas, por exemplo, perante Tanztheater
(1973), de Bausch (ANEXOS : IMAGEM Nº 8), testemunham a riqueza de uma obra
onde os sentidos ambíguos do acontecimento coexistem com o próprio
acontecimento.
Estar alheio à
intelectualização é estar fora da codificação pela linguagem, é libertar-se de significar.
Será esta experiência íntima atingida pela dança, de uma "lucidez
expressiva da imanência", que leva Oiticica a imaginar o Parangolé
onde, à semelhança da dança contemporânea, o improviso desempenha um papel
estrutural.
2.6.
CONTEMPORANEIDADE = A URGÊNCIA DO CORPO LIBERTO
A evolução recente da
sociedade humana é acompanhada por um estreitamento dos códigos da
expressividade corporal – se a aculturação dos gestos humanos é a sua
progressiva codificação, a escala global estipula uma base interpretativa cada
vez mais reduzida. Se comunicar significa ‘’pôr em comum’’, viver na sociedade
global da comunicação hoje significará preferir a produção de ‘códigos fortes’,
aquilo que Umberto Eco explica como mensagens de leitura imediata, sem
referencial. Na dinâmica social contemporânea, o corpo humano é, pelo
imediatismo universal da sua imagem, o protagonista por excelência de uma
circulação infinita de iconografia significante que, através de uma profusão de
imagens (publicidade, televisão, etc), o transformam em pólo de convenções simbólicas.
É Stuart Hall quem
cunha o conceito de “pós-moderno global”, argumentando que “os fluxos
culturais, entre as nações, e o consumismo global criam possibilidades de
'identidades partilhadas' – como consumidores para os mesmos bens, clientes
para os mesmos serviços, públicos para as mesmas mensagens e imagens – entre
pessoas que estão bastantes distantes umas das outras”. A mercantilização do corpo pela sociedade capitalista não é só
a promoção de um discurso propagandístico através do corpo e do gesto - também
se relaciona directamente com o usurpação do tempo através da promoção
ininterrupta do consumo. Assim, estando o tempo do corpo humano tão dependente
dos ritmos exteriormente impostos pela sociedade, perde a capacidade de aceder
a estados não-programados – ou seja, toda a sua linguagem gestual está alheia a
estados não-miméticos, que envolvam, por exemplo, o improviso, o absurdo, a
ilógica, a animalidade ou a inconsciência.
“A lista de compras não tem
fim. Porém, por mais longa que seja a lista, a opção de não ir às compras não
figura nela”
ZYGMUNT BAUMAN
É pela busca dos
estados primordiais que a dança contemporânea se desenvolve, procurando
libertar o corpo de significar. Agamben afirma que “a vanguarda que perdeu o
seu tempo, põe-se no rasto do primitivo e do arcaico”. Ou seja, o presente tem
consciência do devir histórico e relaciona-se com outros tempos, procurando a
‘‘falta’’ – a falta de códigos, a falta de linguagem, a falta de objectos, a
falta de cultura. Onde o eu é um
lugar por encher.
Por outras palavras, modernizar o presente através da arte é
um exercício desconstrutor, de desintelectualização - que Oiticica já evoca
como fundamental para as estruturas fundadoras da sociedade a que Oiticica
aspira. E, à semelhança da dança contemporânea, crê que, em primeiro lugar, o
“bailarino dança no interior do seu corpo’’ (como descreve José Gil), ou seja,
que a mudança acontece primeiramente no espírito.
2.7. A DESINTELECTUALIZAÇÃO
De facto, a desintelectualização
prevista por Oiticica para todos aproxima-se intimamente do princípio humanista
de John Locke da tabula rasa. Porque
não existem ideias inatas, é através da experiência, um processo de recolha
para conhecer, saber e agir, que o conhecimento nasce. Antes disto, a mente é,
para todos, a mesma ‘folha em branco’ por começar.
2.8.
ARTE E RITUAL
"Descobri algo: a Capa Parangolé revela a ambivalência
e depois a multivalência entre o nu e o vestido: CAPA e CORPO são um, mas o
adorno da cabeça elimina o conceito de nudez mesmo que a pessoa esteja nua,
porque o adorno da cabeça revela a INDIVIDUALIDADE; a cabeça é UM e o corpo, UM
ENTRE OUTROS; a descoberta do CORPO tribaliza ao mesmo tempo que permite reconhecimento;
a cabeça não, ela é UM, no seu caso da COLETIVA isso se torna mais profundo e
engravida."
HELIO OITICICA em
carta a Lygia Clark
O parangolé pamplona você mesmo faz
O parangolé pamplona a gente mesmo faz
Com um retângulo de pano de uma cor só
E é só dançar
E é só deixar a cor tomar conta do ar
Verde
Rosa
Branco no branco no preto nu
Branco no branco no preto nu
O parangolé pamplona a gente mesmo faz
Com um retângulo de pano de uma cor só
E é só dançar
E é só deixar a cor tomar conta do ar
Verde
Rosa
Branco no branco no preto nu
Branco no branco no preto nu
O parangolé pamplona
Faça você mesmo
E quando o couro come
É só pegar carona
Laranja
Vermelho
Faça você mesmo
E quando o couro come
É só pegar carona
Laranja
Vermelho
Para o espaço estandarte
Para o êxtase asa-delta
Para o delírio, porta aberta
Pleno ar
Puro hélio
Para o êxtase asa-delta
Para o delírio, porta aberta
Pleno ar
Puro hélio
Mas o parangolé pamplona você mesmo faz
O parangolé pamplona você mesmo faz
O parangolé pamplona a gente mesmo faz
O parangolé pamplona você mesmo faz
O parangolé pamplona você mesmo faz
O parangolé pamplona a gente mesmo faz
O parangolé pamplona você mesmo faz
Com um retângulo de pano de uma cor só
E é só dançar
E é só deixar a cor tomar conta do ar
Verde
Rosa
Branco no branco no preto nu
Branco no branco no preto nu
E é só dançar
E é só deixar a cor tomar conta do ar
Verde
Rosa
Branco no branco no preto nu
Branco no branco no preto nu
O parangolé pamplona
Faça você mesmo
E quando o couro come
É só pegar carona
Laranja
Vermelho
Faça você mesmo
E quando o couro come
É só pegar carona
Laranja
Vermelho
Para o espaço estandarte
Para o êxtase asa-delta
Para o delírio, porta aberta
Pleno ar
Puro hélio
Para o êxtase asa-delta
Para o delírio, porta aberta
Pleno ar
Puro hélio
Mas o parangolé pamplona você mesmo faz
O parangolé pamplona a gente mesmo faz
O parangolé pamplona você mesmo faz
O parangolé pamplona você mesmo faz
O parangolé pamplona você mesmo faz
O parangolé pamplona a gente mesmo faz
O parangolé pamplona você mesmo faz
O parangolé pamplona você mesmo faz
O parangolé pamplona você mesmo faz
ADRIANA CALCANHOTO
Parangolés, pássaros
tropicais. Situados numa zona de estranheza, parecem desajustados de
classificações como ‘arquitectura provisória’ ou ‘escultura em movimento’ por
várias vezes evocadas para os enquadrar e que parecem impor-se como categorias
forçadas sobre um projecto aberto que firma a rotura com as sistematizações. Se é difícil
categorizar esta obra, foi talvez na liberdade da poesia que as suas mais
bonitas legendas se encontraram. Sobre os Parangolés
em estado de desabitação, escreveu o poeta Haroldo de Campos que lembravam “as
asas murchas de um pássaro” e bastaria alguém vesti-las e abrir os braços para
que se confundissem com uma “asa-delta para o êxtase”. De facto, é uma aura poética o que está na génese desta obra -
experienciá-la é um movimento mítico, uma curva transformadora da experiência.
Existindo como
vestimentas com finalidades catárticas para o corpo que as veste, os Parangolés
parecem reminescentes de vestes de culto associadas a um ritual cerimonial.
Efectivamente, a pesquisa estética de Oiticica chegará ao conceito de
‘‘evento’’, necessariamente implicado numa ideia de ‘‘duração’’, elementos
indispensáveis à existência do ritual. Se podemos sucintamente designar
‘‘ritual’’ como uma sessão performativa de gestos, palavras e objectos e que,
com fins metamórficos, rompem o tempo e espaço previamente designados, a
experiência evocada pelo Parangolé poderá ser assumida como ritualística. Um
ritual informal e pagão, neste caso, onde, sem regras, pela imanência se
revelam as formas míticas que vivem no mundo fenomenológico, e a que estes
ímpetos físicos acedem.
A experiência
proporcionada pelo Parangolé é, para Oiticica, um ‘objectevento’’, mas outras
expressões surgirão para precisar este género de nova experiência transicional
intimamente corpórea, que brota em oposição o ritmo do dia-a-dia : a “experiência
mágica”, o “achado de algo” ou a “comunhão com o ambiente’’. Transformados, os
olhos lavados pelas cores e estimulados pelos ritmos participarão de um
projecto utópico de Oiticica de (re)construção do mundo através da arte. Inspirado
pelo dia-a-dia nos morros e pelos sambas criados e vividos pelos seus
habitantes, Oiticica faz corresponder Realidade e Autenticidade – aqui se sublinha
a vocação ritualística dos Parangolés que, ao limite, podem ser experienciados
indistintamente por todos, independentemente da classe social. Espontaneamente e sem códigos
prévios, uma forma de vivência ritual intuitiva, corporal e emocional, próxima
das religiões pagãs, onde não existe cisão entre corpo e espírito, aproxima o
ser do mundo concreto. E a experiência nunca se esgota – os parangolés podem
ser vividos quantas vezes se desejar. Tal como à dança não se esgotam os
movimentos.
“Existem dois tipos de
rituais. O primeiro estudado pelos etnologistas, que é familiar, é um acto
inconsciente sem deliberação estética, resultado da influência étnica de muitas
gerações que culmina num grupo com seu sistema fundamental. E o segundo tipo,
ou seja, um novo tipo de ritual, que é a criação do indivíduo excepcional que
transforma a sua experiência através de um idioma metafórico conhecido como
arte’’
JAMAKE HIGHWATER in Dance - Rituals of Experience
3. PARANGOLÉS, EVENTOS DO CORPO
"É a fantasmática do corpo, aliás, que me interessa, e
não o corpo em si."
LYGIA CLARK em carta a Hélio Oiticica
“O
Corpo é fantasma. Esconde-se e depois aparece.”
GONÇALO M.
TAVARES in Livro da Dança
Nos Parangolés,
mensagens como “Incorporo a Revolta” e “Estou Possuído” surgem entre estas
capas multi-texturadas sugerindo convites à acção-limite da experiência. Não
sendo objectos limitados mas obras à espera de nascer, os Parangolés são um
lugar em aberto a que a experiência artística em si se funde para que o curso
usual dos acontecimentos se interrompa - assim criando, nas palavras de
Oiticica, “objectos-evento”, “reuniões-evento” ou “amomentos”.
3. 1. OS EMBRIÕES
ARTIFICIAIS
Numa manifesta posição
contra as formas fixas, seja qual for o modo hierárquico, individualista ou
governamental em que se manifestem, os Parangolés fundam-se, à primeira vista,
em preceitos anárquicos. Emblemas da liberdade total são idealizados para,
potencialmente, actuarem como ‘embriões de renascimento’, células vazias
prestes a ser ocupadas por qualquer corpo livre predisposto à regeneração. A
estes ventres onde, em todas as suas potencialidades, o ser explode em direcção
a um segundo nascimento preside um ideal utópico de emancipação humana. Ou
seja, o projecto de Oiticica é mais comprometido com a sociedade do que à
primeira vista se poderia adivinhar – e carrega uma intrínseca vocação
universal.
Perante as
indefinições políticas e sociais, projectos artísticos de ‘’embriões
artificiais’’ surgem como ‘’bolhas’’ de possibilidades em anos particularmente
fervilhantes de redefinição das vanguardas artísticas. (Se o panorama artístico
deve ser sempre lugar de não-conformismo, entre vagas cíclicas se aprende que o
fluxo da história não é linear e que o radicalismo é uma atitude necessária. )
À semelhança dos
Parangolés, a obra Divisor criada pela artista brasileira Lygia Pope (também
alinhada com o Tropicalismo) em 1968, depende da interacção com corpos humanos
para existir. São necessárias 200 pessoas para preencher as fendas regulares de
um gigantesco manto branco que lhes deixa somente as cabeças de fora. No lastro
do trabalho de Oiticica, esta estrutura performativa não implica a presença da
autora e estimula a que, no improviso da reunião dos elementos participantes,
surja uma harmonia coreográfica.
Também o Suitaloon, concebido
por Michael Webb (membro do colectivo britânico de arquitectura experimental
Archigram) só adquire sentido quando habitado por um corpo ao qual se molda.
Esta estrutura maleável e transportável, funciona como unidade habitacional
essencial para um só indivíduo, numa abordagem radical que encara a casa como
uma segunda pele.
Num exemplo igualmente radical, para
Friedrick Kiesler uma casa era um corpo humano, um organismo vivo com a
reactividade de uma criatura de carne e osso e, como tal, com órgãos, a que
associava as diferentes funções dos espaços. Com a Endless House, propõe em
1959 uma casa que envolve organicamente o corpo, uma forma curvilínea, uma
estrutura-ovo. O seu projecto não incluía um esqueleto mas antes uma pele
estrutural que definia o espaço – casa como um corpo vivo. Existe uma perda de
referentes fixos, com superfícies inclinadas e curvas, o chão e o tecto
contínuos, fundindo-se com o mobiliário, por isso o próprio nome do projecto
explicita esse carácter de objecto de limites indefiníveis, de linhas contínuas
nas quais não é possível identificar princípio ou fim – onde começa corpo e
acaba casa.
Em Je t’aime Je
t’aime (longa-metragem de Alain Resnais, 1968), uma
membrana orgânica surge como um estranho orgão em que um homem se encaixa para
viajar no tempo. Todos estes são lugares em grande parte esculpidos pela imaginação. Quer-se com isto
dizer que, tal como os parangolés, situam-se próximos da utopia – sítios
sonhados à medida do corpo para que este se transforme profundamente e se
cumpra nas suas mais altas potencialidades. Mudar
a sociedade ao ritmo de um corpo de cada vez.
O PARANGOLÉ, VESTIR PARA
ENCONTRAR NUDEZ
“É contemporâneo aquele que recebe em pleno rosto o feixe de treva que
provém do seu tempo.”
GIORGIO AGAMBEN in Nudez
Encontrar hoje alguma clareza
para escutar vozes do passado, distinguindo com lucidez entre o rodopio
espectacular do mundo, é não escapar à força dos ensinamentos de Oiticica “e
procurar um modo de dar ao indivíduo a possibilidade de experimentar, de deixar
de ser espectador para ser participador." Foi este deslocamento da
experiência que nos trouxe o Parangolé, simples dispositivo engenhoso: vestir
uma capa e dançar, ou dar início um profundo projecto de evasão do eu e logo
mais claramente olhar para dentro – e ver que há por mudar em redor.
Uma emancipação
que propõe o abandono do racional em direcção ao vivencial. Que enfatiza o
estímulo plurisensório como uma postura activa de um movimento que onde
experiência e criação se encontram. A arte foi liberta, a autoria declarou-se
obsoleta. A experiência artística previu-se única e intransmissível. Habituados
como estamos aos egos dos artistas, quanto não há para admirar nesta capacidade
de um autor de abdicar da própria autoria? Precursor de tantas questões ainda
actuais, Oiticica não pode deixar de ser nosso indispensável contemporâneo.
BIBLIOGRAFIA
-
ARTIGOS CONSULTADOS
* AFTER
ALL #28, 2011
* SCHOBER,
Anna, “Helio Oiticica’s Parangolés: Body Events, Participation in the
Anti-Doxa of the Avany-Garde and Struggling Free from it”
* SANTOS, Lionês Araújo
dos, et al, ‘’A MERCANTILIZAÇÃO DO CORPO:
MÍDIA E CAPITALISMO COMO PRINCIPAIS AGENTES DA PROMOÇÃO DO CONSUMO E DO MERCADO’’
- LIVROS
CONSULTADOS
* AGAMBEN, Giorgio, Nudez,
Relógio d’Água, 2009
* ECO, Umberto, O Signo, Editorial Presença, 2017
* LOUPPE, Laurence, Poética da
Dança, 1ª ed. - Lisboa: Orfeu Negro, 2012.
* OITICICA, Hélio
Oiticia & Clarck, Lygia. Cartas: 1964-74, Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ2
* O’REILLY, Sally,
The Body in Contemporary Art, Thames & Hudson, 2009
* GIL, José,
Movimento Total, O Corpo e a Dança, Relógio d’Água, 2001
* GIL, José,
Metamorfoses do Corpo, Relógio D''Água,1997
* SILVA,
Agostinho, Considerações e Outros Textos, Assírio & Alvim, 1989
* TAVARES, Gonçalo
M., O Livro da Dança, Assírio e Alvim, 2001
-
SITES CONSULTADOS
http://homepage.univie.ac.at/anna.schober/Schober.pdf
http://www.avidaquer.com.br/os-parangoles-de-helio-oiticica-deveriam-ser-de-todos-os-brasileiros/
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FILMES CONSULTADOS
* H.O., Ivan Cardoso, 1979
- IMAGENS PARA ANEXO :
* IMAGEM Nº
1 : Sambistas da Escola
de Samba Vai Vai (SP) usam "Parangolés" originais de Helio Oiticica.
* IMAGEM Nº2 /
IMAGEM Nº 3 : Stills do filme H.O. de Ivan Cardoso, 1979
* IMAGEM Nº 5 : Egocentric
Space Delineation, Oskar Schlemmer, 1924
* IMAGEM Nº 6: Figuras
Geométricas, Nijinski
* IMAGEM Nº 7: Trisha Brown,
Compass, 2006
* IMAGEM Nº 8 : Tanztheater, Pina Bausch
* IMAGEM Nº 9 : Divisor, Lygia Pope, 1968
* IMAGEM Nº 10: Suitaloon, Michael Webb (Archigram, 1964)
* IMAGEM Nº 11 : Endless
House, Friedrick Kiesler, 1959
* IMAGEM
Nº 12 : Je t’aime Je t’aime, Alain Resnais
1968
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