Sabrina Marques
“Era uma vez um tempo, há não muito tempo atrás,
em que os rapazes sonhavam com grandes heróis que ousavam e disputavam, que
lutavam e conquistavam, que levitavam e sobrevoavam os ares... os seus sonhos
realizaram-se na forma de Douglas Banks.” Jeanine Basinger
A Máscara de Ferro carrega ainda hoje a força de um adeus sentido
: é Douglas Fairbanks, a grande estrela do mudo, quem através dele se despede.
Herói de todos os heróis, também ele um axioma, em toda a hipnotizante
vitalidade preencheu de aventura os dias dourados do mudo. Estava-se em 1929,
ano do big crash, mas também o primeiro ano da história de Hollywood em
que a produção de filmes sonoros predominou sobre a de filmes mudos. Um ano em
que um filme como A Máscara de Ferro só pode, portanto, surgir como uma
assumida construção da nostalgia. Pela primeira vez se faz Fairbanks ouvir,
estendendo um monólogo declamado em substituição de um prólogo que
habitualmente seria descrito por intertítulos. Pela primeira vez, um herói por
si protagonizado morre no fim, juntando-se ao seu trio de companheiros numa
maior aventura além. E pela primeira vez, em lugar de um THE END, se desenha um
THE BEGINNING, no plano final de A Máscara de Ferro.
Poucos assim foram, como Fairbanks, figura à qual
a mise-en-scène se subordina. Dwan sabe-o, sabe que esse que foi Zorro,
foi Robin dos Bosques, foi Ladrão de Bagdade, foi Pirata, e que na sua
juventude foi um moderno D’Artagnan (em A Modern Musketeer, 1917), se
expande numa presença soberana, que potencia a expressão do seu corpo até ao
fim das suas extremidades, e que não saberia já adicionar-lhe a linguagem da
voz, matéria para um outro treino.
O mudo foi corolário do modelo pantomineiro
tanto quanto caminho para o seu esgotamento. A expressão acentuada de corpos e
rostos procura conseguir a mais imediata leitura, e o rosto transforma-se no
mapa de constantes eventos. O rosto do herói, em mutação sob o poder do close-up,
é o mais iniciático, mais empático elo com o público, e é a chave do actor para
ser também star. A emergência do starsystem é a época fértil dos
halos e das deificações. A maravilhosa invenção recente é entretenimento, mas
suficientemente sério para não faltar à arte; é negócio, mas suficientemente
afectivo para não deixar de se lembrar que é do surpreendente que nasce a
lenda. Com arte ou sem ela, os anos dourados são sobre o triunfo do
espectáculo. O traço firme de Dwan sempre enfatiza o storytelling,
eternizando odisseias maiores do que a vida consumadas por heróis perfeitos,
hipnotizando o imaginário colectivo com contos de aventura e de romance só
assim descritos na sala de cinema (e que encontram o seu paralelo de hoje num
modelo francamente distinto). Entre as longas décadas de um cinema alicerçado
em construções arquetípicas, os filmes de heróis de Dwan são a mais culminante
redundância do seu estilo. A adaptação literária de populares romances
pitorescos, a encenação em conformidade com uma outra época, os clichés que se
replicavam em convenções narrativas (“boy meets girl”, “happy ending”...), a
estilização cómica das personagens e os gesticulados exageros do género slapstick
reúnem-se para engendrar barroquíssimas comédias, complexificadas por elementos
simbólicos (como o crachá da rainha em Os Três Mosqueteiros ou o
medalhão dividido em dois em A Máscara de Ferro) que aguçam o decorrer
da acção.
Mas, se se percebe a olho nu que a adequação de
um Douglas Fairbanks ao papel de herói está no imediatismo do seu porte
atlético, o que afasta Dwan, ao serviço do star-system, do ludíbrio, da
mera resposta aos impulsos adolescentes de todo um público movido pela fome de
idolatria? É que, ao perceber a natureza das histórias, Dwan liberta-as.
Histórias já conhecidas são matéria-prima moldável que cria novas estruturas,
estruturas precisas e inaugurais que, à velocidade voraz da inovação no cinema,
desenham novas formas para as figuras de ontem - e pelo novo medium se
perpetuam. Como nesta Máscara de Ferro, em que, pela morte de
D’Artagnan, é Fairbanks quem se despede da sua arte e de uma era que se
extingue. Propositadíssimo paralelo, uma vez que na última instância da
trilogia dos Mosqueteiros a opressão do uso da máscara implica a dissolução da
identidade e do poder de Luís XIV (o auto-proclamado Rei-Sol por direito
divino) quando este é raptado e substituído no trono pelo irmão gémeo. Do mesmo
modo, a ênfase no rosto aliviar-se-ia com a oportunidade que o som concedeu à
expressão vocal. Aparte do discurso inaugural, A Máscara de Ferro é um
filme mudo mas, em 1952, surgiria uma versão renovada que, a par da montagem
distinta, substituía os entretítulos pela narração de Douglas Fairbanks Jr. E,
no final, é pela voz deste que se ouve o que é menos um epílogo e mais um
epitáfio: “E assim se foi um bravo e glorioso homem, com honra. Basta pensares
e voltaremos a viver. Viveremos para sempre, porque connosco, agora como
sempre, é um por todos e todos por um.”
O romance de Alexandre Dumas seria adaptado por
Dwan pelo menos quatro vezes : Richelieu (1914), A Modern Musketeer
(1917), The Iron Mask (1929) e The Three Musketeers (1939). E se,
entre estes filmes, o primeiro hoje se encontra perdido, o último, já sonoro e
sem Fairbanks, seria um desastroso exercício de excesso, exemplo da instantânea
sobredosagem de som e de música com que se recebeu os talkies.
A figura de Fairbanks é o emblema dessas primeiras décadas dos
filmes de aventura, género intimamente corpóreo que exalta as façanhas do herói
sempre homem. A supremacia do ideal viril, que se supera em destreza e valentia
e que corajosamente enfrenta as mais altas batalhas e aventuras, é o maior
fetichismo da época: nenhum outro género então mostraria assim os corpos. Neste
compartimentado género fantasioso, fixado por traços sobremasculinizados (que,
para lá da época que o datou, talvez só aos macmahonistas agradariam), os
mesmos clichés repetidamente surgem: é o herói que triunfa, é o vilão que tem o
que merece e são as mulheres que estão num plano secundarizado, em que o seu
amor é tantas vezes a recompensa pelo esforço da demanda heróica. Estereótipos
replicam estereótipos e, se há uma indubitável atmosfera conservadora que
subjaz à movimentação repetitiva do género, afirmamos Dwan como um realizador
conservador? De todo. Estamos perante um cinema de colisões, capaz de absorver
todo o tipo de particularizações em que filmes como A Máscara de Ferro ou
Os Três Mosqueteiros se possam encaixar. Quase como se por excepção. A sua
arte - que é o que há a distinguir para a justa apreciação do seu legado
autoral pelo hoje e pelo amanhã - revela-se com maior distinção noutros filmes.
Filmes que enaltecem a força feminina, em histórias lideradas por mulheres ou
com personagens femininas memoráveis por uma astúcia ímpar, como em Josette (1939),
mas principalmente, nos precursores Woman They Almost Lynched (1953) ou Slightly
Scarlet (1956). Com o massivo corpo de um trabalho pioneiro (que quase
chega aos 400 títulos), com Dwan tanto se pergunta como se responde ao que deve
ser o cinema.
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