domingo, 2 de outubro de 2016

2016 / ''Entre Doisneau & Mapplethorpe: Não há imagens inocentes''


Entre Doisneau & Mapplethorpe: Não há imagens inocentes. 
para FESTIVAL DO RIO 2016
Sabrina D. Marques 


1.APARÊNCIA DE REALIDADE
‘‘Doisneau: le révolté du Merveilleux'' de Clémentine Deroudille e ‘‘Mapplethorpe: Look at the Pictures’’ de Fenton Bailey e Randy Barbato trazem ao Festival do Rio 2016, olhares muito distintos sobre os processos de dois fotógrafos tão diferentes como Doisneau (1914-1994) e Mapplethorpe (1946-1989) e, subitamente, estes surgem-nos mais próximos do que nunca. As perfeitamente encenadas fotografias de estúdio que celebrizaram Mapplethorpe reúnem-se com as perfeitamente encenadas fotografias de rua que celebrizaram Doisneau, num projecto geral de mîse-en-scène que, por sua vez, os aproxima do método cinematográfico. 

 2. DOISNEAU, A DESCONSTRUÇÃO DO MÉTODO 
 Chegamos a um dos mais sonantes nomes da história europeia da fotografia, Robert Doisneau, através de um retrato íntimo realizado pela neta. E se é comum que nos surja apresentado como fotógrafo do inesperado, por capturar a agitação das ruas de Paris, ou como fotógrafo do amor, por ter guardado algumas das imagens que melhor construíram a aura romântica da Paris que habitava, este ‘‘maravilhoso’’ em que participam as suas imagens é, na verdade, um valor menos encontrado e mais construído. Autor de algumas das mais icónicas fotos do século XX, inscreveu o seu legado num lugar indefinível que - para usar a bela expressão de Manuela Penafria - se poderia apelidar de documentira. Susan Sontag poderá ajudar-nos a perceber o que não nos é imediatamente óbvio: ‘‘As fotografias guardam detalhes. Por isso, as fotografias parecem-se com a vida.’’ É, por isso, fácil ao espectador confundir a qualidade inesperada das fotografias que observa, com documentos raros capturados no agudo instante de uma passagem. Uma fotografia grava apenas a aparência. Ao revelar o processo de produção destas imagens, este documentário permite ao espectador o acesso aos detalhes de um contexto que estão dissimulados na própria imagem, adicionando a informação que permite deslindar essa mesma dissimulação. No fundo, ensinando-nos como ver é, por princípio, estar imediatamente disponível para acreditar no que se vê. Presente no festival, Jan Vasak, produtor de ‘‘Robert Doisneau: le révolté du Merveilleux’’, esclarece-nos como estes aparentes ‘retratos de situação’ encobrem o projecto geral de mîse-en-scène em que assentam:‘‘A revista LIFE encomendou os Amantes de Paris. Mas, nos anos 50, os namorados não se beijavam nas ruas de Paris. Esta visão ‘nós somos franceses, somos românticos e beijamos toda a gente’ não é assim tão simples, e nos anos 50 ainda era menos - as pessoas não se beijavam na rua. Mas a imprensa americana tinha vontade de exprimir no seu jornal esta visão de uma Paris romântica. Então, Doisneau decidiu pegar em dois actores e fotografá-los por todo o lado em Paris. No meio destas fotos, há o Beijo do Hotel da Cidade. Uns anos mais tarde, a responsável por uma sociedade de edição de postais, encontra esta magnífica foto. A foto dá a volta ao mundo e torna-se o emblema dos amantes de Paris, o emblema de Doisneau. No momento dos atentados de Novembro, a foto foi ampliada, impressa e colocada na praça da República. É o símbolo da Paris que se ama, em fraternidade e em liberdade.’’ 


3. A MÎSE-EN-SCÈNE ÓBVIA E NÃO ÓBVIA 
Saber mais sobre a intenção que precede o gesto coloca-nos no fora-de-campo da própria imagem fotográfica. Este ultrapassar dos limites do quadro que encaramos, reajusta a sua leitura, esclarecendo como o próprio meio que vemos (a imagem) molda o nosso modo de ver. Ao contrário de Mapplethorpe, o estúdio de Doisneau era a rua. Fotógrafo-flanêur, não lhe conseguimos recordar uma fotografia que não seja protagonizada por pessoas - gesto que, de imediato, denuncia um compromisso com um fundo de realidade e uma permanente disponibilidade para as variações da alteridade humana. Mas o aparente esquema de observação do quotidiano encenado por Doisneau oblitera o princípio de encenação que geralmente o constitui e, produz imagens que passam por documentos da realidade quando têm apenas a realidade como referente. Não estamos em Paris - estamos na Paris de Doisneau. 

4. O PERIGO DA BELEZA 
A reconstrução do espaço público a partir da modelação desse mesmo espaço público, progressivamente conduzida por Doisneau, decorre de uma intenção declarada de aperfeiçoar a realidade através da criação fotográfica. Porque a fotografia cria memória, este um gesto consciente - a fotografia é uma ficção da mesma forma que a memória é uma ficção. É necessário ver para lá da óbvia plasticidade: a calma e a tranquilidade que estas imagens perpassam, veículos de uma adocicada visão poética da vida, carregam também um nocivo convite ao conformismo. Se nada há a mudar no que é supremamente belo, não devemos moralmente fugir de embelezar os mais críticos contextos políticos e sociais? 

5. DOISNEAU: ESTA É A PARIS ONDE EU QUERO VIVER Há hoje, em França, ruas e escolas primárias baptizadas em honra de Doisneau, assinalando a sua atenção às crianças que povoavam as ruas, e os inúmeros postais e calendários dos seus famosos casais a beijar-se ressurgem a cada recanto nas lojas de souvenirs. Alinhou as suas séries ao longo de 20 photo-books, criando relações através da montagem, que nos recordam da defesa da série fotográfica como cinema demonstrada pelo seu contemporâneo e conterrâneo Chris Marker em La Jetée (1962). Na obra de Doisneau, as relações de aproximação ao cinema não se esgotam aí. A mîse-en-scéne é o seu laboratório permanente, progressivamente retrabalhando a imagem fotográfica enquanto linguagem produtora de encantamento. Consciente das possibilidades da fotografia enquanto recurso publicitário, Doisneau produz imagens perfeitas perpassadas por um repetitivo romantismo comercial que usa a fotografia, acima de tudo, para produzir ‘objectos de desejo’. 

6. DOISNEAU E MAPPLETHORPE: PONTOS DE CONTACTO\
Recorrentemente descrito como um caçador de imagens, Doisneau é mais precisamente - tal como Mapplethorpe - um encenador de imagens. Se Mapplethorpe é, entre outras coisas, um dos mais celebrados retratistas de celebridades, coleccionando poses de stars, Doisneau pagaria a actores para encenar a França onde todos gostariam de viver. Cientes de que a fotografia impõe cultura sobre a cultura, constroem obras dirigidas às massas mas antecipadas por intenções muito distintas. A fotografia de Doisneau testemunha uma utilização estratégica da fotografia no sentido da teatralização controlada do real que preservava todos os indícios de verosimilhança. Por sua vez, a construção do nova-iorquino Mapplethorpe consistia numa performatização exagerada de rostos, corpos e gestos que, desafiando a sua época com demarcado sentido de risco, criavam imagens explícitas da homossexualidade, do travestismo ou do sadomasoquismo gay. Independentemente dos temas íntrinsecos a cada um, não deixavam ambos de dirigir-se às massas, integrando a produção de imagens numa lógica de mercado. 

7. NÃO HÁ IMAGENS INOCENTES
Tal como não há inocência no gesto de fotografar, também não há imagens inocentes. É aí que o título do documentário ‘‘Doisneau: le révolté du Merveilleux’’ erra fatalmente na sua renomeação à posteriori - não há margem para vestígios de revolta nessa exaltação do Maravilhoso. Apesar das similaritudes, reflectir sobre o lugar no presente de dois fotógrafos tão diferentes como Doisneau e Mapplethorpe é, afinal, abrir uma fenda entre um clássico e um contemporâneo. Se é inegável que ambos avançaram tecnicamente na fotografia, enquanto a obra de Doisneau se instala no exercício das convenções estéticas e temáticas, a de Mapplethorpe questiona-as. A que lugar pertence a ideia de Belo na arte contemporânea? 

8. AUTORIDADE E AUTORIA
Recordemos Susan Sontag quando explica como as ‘‘imagens produzidas por câmaras são o principal acesso às realidades das quais não temos referência directa.’’ Mas é porque qualquer câmara - fotográfica ou de filmar - não se opera sozinha que devemos sublinhar Alan Sekula quando este escreve que, irremediavelmente, qualquer fotografia transporta uma ‘‘mensagem que incorpora um argumento’’ - mensagem esta que poderá ter uma panóplia de leituras distintas consoante o contexto. Assim, não é possível deduzir simplemente de Doisneau uma raiz política conservadora ao sabermos que as mesmas fotos - nomeadamente as suas composições de família - tanto eram compradas por publicações de direita como de esquerda. Capaz de enformar o nosso pensamento e dirigir o nosso olhar para onde quer, a imagem é activa. Consoante o contexto, esta acção pode ser uma manipulação. 

9. FOTOGRAFIA, O TURISMO COMUM
Se aconteceu que a cidade mais turística do mundo fosse também o local de nascimento da fotografia (e o berço europeu do cinema), adivinhamos que Paris tenha sido a primeira cidade a promover o coleccionismo de postais. Como outros fotógrafos, foi a estratégia de divulgação do seu trabalho em formato-postal o que possibilitou ao parisiense Doisneau a continuidade do desempenho profissional da fotografia e o que, numa fase tardia, lhe trouxe uma notoriedade popular. Na entrevista que dá a Régis Debray em Iténeraire d’un Cinéfils (Pierre-André Boutang e Dominique Rabourdin, 1997), Serge Daney confessa-se ávido coleccionador de postais e chama-lhe cinefilia. Tal como stills de filmes, os postais relacionam-se com a fotografia e com o cinema enquanto pontos-de-partida de uma viagem. A imagem é uma porta de imediata expansão do mundo, de transporte instantâneo para outra realidade - de tal forma, que Susan Sontag afirmaria que ‘‘a fotografia é a mais soberana forma de turismo’’. 

10. TIRAR FOTOGRAFIAS / FAZER FOTOGRAFIAS 
Sérgio Mah escreveu que uma coisa é tirar, outra coisa é fazer fotografias. Há um peso a sublinhar nessa intencionalidade do "fazer", notando como esta dimensão construída se encontra intimamente relacionada com o cálculo do custo inerente à produção de uma imagem. Com as possibilidades do digital, ao disseminado hábito de ‘‘tirar fotografias’’ corresponde um exercício de pós-produção: hoje, o tempo é gasto depois, num exercício selectivo que navega no interior de uma enorme quantidade de fotografias acumuladas, substituindo a reflexão que antecedia o fotografar no suporte analógico. Para lá de espectadores da arte fotográfica somos, mais do que nunca, agentes activos num processo contemporâneo de redefinição do conceito de fotografia, centro em mutação permanente. Quem é fotógrafo numa sociedade em que toda a gente fotografa? No seu Ensaio sobre a Fotografia, Flusser, escreve que ‘‘De modo geral, toda a gente possui um aparelho fotográfico e fotografa’’, mas com hábitos que ‘‘eterniza(m) a automaticidade insconsciente de quem fotografa’’. 

11. O PENSAR E O FAZER 
Apesar de estilisticamente desiguais, ambos os filmes garantem o teor informativo que se espera de um documentário biográfico mas, como tantas vezes acontece neste formato, não se preocupando formalmente em estar à altura do homenageado. Certo é que, melhor ou pior, temos acesso a um retrato de contexto e, no exercício de comparar os dois fotógrafos, reconhecemos como avançaram tecnicamente no suporte artístico em que criaram mas, utilizaram o mesmo medium para responder de formas muito distintas à sua realidade. Perante a ininterrupta diversidade de acções possíveis, é consciente de que não existem imagens inocentes, que Nicole Brenez deixa um conselho prescrito à epidemia da velocidade disseminada pela criação contemporânea:‘‘há que manter permanentemente presente a questão: qual é o propósito de fazer uma imagem ou de não fazer nenhuma?’’

domingo, 13 de março de 2016

2016 / L’Ombre des Femmes: nunca tão longe das liras


‘‘Numa encruzilhada do coração / não há templos para Apolo.’’ RAINER MARIA RILKE
L’Ombre des Femmes é um Garrel no estado último do desencanto. E nós com ele: rapidamente sufocamos no interior destas relações amorosas reduzidas ao alicerce mais prosaico das suas existências materiais. Sofremos com a repetida mundanidade dos seus recantos físicos e cronológicos, e descremos na possibilidade de encontrar uma qualquer verdade no meio desta sinfonia de banalidades. O que sustém a rota destes corpos de cama em cama? Num fundo de sofreguidão, sente-se um desfoque, uma suspensão do ‘‘eu’’, uma falta de rumo que a todos une. A languidez decorre da fadiga, ou assim parece. Na exaustão de quem assiste à vacuidade destas danças, convenço-me de que há compreensões a que nunca chegarei: o que fazemos a nós próprios em nome dessa suposta ideia de amor?
Idas as horas do garreliano lirismo: com ‘‘L’Ombre des Femmes’’, o mestre do atemporal romance em filme a preto-e-branco tira-nos o que nos deu. Reduz o amor a um sistema de posses e de expectativas, e tapa o último feixe de luz: tudo se ensombra com ciúmes, negociações, traições, revelações, cache-cache, separações e o desamor último, que lança cada um para a sua solidão. Nenhuns estão bem juntos nem separados, logo, nenhum dos desenlaces possíveis é um final feliz. Porque afinal, nisto do amor, aprendemos, não há finais felizes. Neste cenário, a música não tem por onde acontecer. A poesia vive dos véu de Apolo e, aqui, a realidade é demasiado real. A precariedade deste quotidiano secou qualquer fundo de beleza, tão dependente do mistério. Se não parece, é porque não é - esta não é a casa de um romance.
O anterior ‘‘Jalousie’’ já nos tinha deixado no travo amargo desta decadência costurada. E em ‘‘L’Ombre de Femmes’’, para vincar ao extremo o argumento, há o exemplo contrapontual que dá aos protagonistas o espelho que não usam: o velho casal (do qual conhecemos apenas o nome do homem, o ‘‘resistente impostor’’) no seu quadro de farsa desvelada no fim. O que Garrel parece enunciar é que a farsa é total e que o amor para sempre não existe - o que une esses casais ao longo de uma vida só pode ser (mais uma) história que eles se vão contando e acreditando.

quarta-feira, 4 de março de 2015

2014 / MAIS HUMANOS DO QUE OS HUMANOS (Blade Runner)

Mais humanos do que os humanos*
sobre BLADE RUNNER de Ridley Scott (1982)
(*o slogan da Corporação Tyrell é: “Replicants genéticos - mais humanos do que os humanos.)
 “O destino das figuras é transfigurar-se.”
JOSÉ-AUGUSTO MOURÃO

Estamos em Los Angeles, em 2019. Neste futuro apocalíptico, a Terra e a raça humana sofreram as consequências da guerra nuclear e novas colónias fora deste Mundo foram criadas para destino das migrações humanas. A Terra é agora um submundo sombrio, onde a paisagem hi-tech de néons e arranha-céus jaz como uma promessa incumprida, enublada pela poluição e oprimida por uma vigilância permanente. Aqui, os animais foram extintos e bio-engenheiros marginais enriquecem com o negócio da criação artificial de espécies para ostentação, ou constroem componentes sintéticas para humanoides. Numa atmosfera de incerteza, os humanos são o passado e são o futuro. Entre os humanos caminham indistintos os replicants, uma nova raça de androides bio-robóticos geneticamente desenhados pela Corporação Tyrell com propósitos militares e de exploração do espaço, em aspecto idênticos a um jovem adulto humano mas fisicamente aperfeiçoados. A característica psicológica central de um replicant é a sua falta de emotividade, passível de ser medida por um dispositivo Voight-Kampff - método que combina questões de análise empática e máquinas de medição fisiológica -  e que é a única forma de distinguir um humano de um replicant, dadas as similaridades. Encontrar Roy, Pris, Zhora, Leon, Hodge e Mary, os seis replicants modelo Nexus-6 em fuga na Terra, onde são ilegais depois de um sangrento motim no espaço, é a tarefa protagonizada por Deckard (Harrison Ford), um blade runner, oficial especializado na sua eliminação. Estes androides são modelos Mental-A, ou seja, a capacidade intelectual é, pelo menos, igual à do seu criador - como exemplifica o caso do replicant Roy Batty e do seu ‘‘pai’’ Tyrell. Incorporam, por isso, um mecanismo de segurança que determina que a extensão máxima da sua vida seja de quatro anos apenas, impedindo que a inteligência artificial desenvolva mecanismos autónomos de cognição emotiva e de subsequente imunidade ao teste.
Estes replicants herdam a mente artificial de HAL 2000, o malévolo super computador que em 2001 - ODISSEIA NO ESPAÇO (Stanley Kubrick, 1968) evocava já o problema da autonomização da inteligência artificial: a sua evolução poderá culminar na revolta da criação contra o criador, como o monstro nascido das mãos do Dr. Frankenstein. O que significa, afinal, a sua famosa exclamação ‘‘it’s alive” ? Qual é o valor ontológico da vida artificial? Este é o conflito central de BLADE RUNNER. A qualidade que distingue estes androides dos predecessores é terem recebido implantes de memórias relativas a uma vida prévia que não existiu. Um passado-simulacro sustentado por fotografias falsificadas alimenta emoções frágeis nestes replicants e bloqueia inatamente uma consciência acerca da própria artificialidade (por exemplo, em Rachael) e, por conseguinte, de uma extinção precoce. Ou seja, estes replicants não saberiam o que eram se isto não lhes fosse revelado exteriormente. Pris (Daryl Hannah), cita Descartes: “Eu penso, logo existo”. Logo, todas as dúvidas: Será possível tratar toda a informação que compõe um ser humano como software a ser implantado em hardware? Porque coexistem em simultâneo no ser a consciência da vida e da própria finitude desta? A revolta dos replicants, os super-homens, afinal rima com a revolta dos homens. Apesar do progresso, a decrepitude é inevitável : é a dança macabra, essa derradeira incapacidade da existência de aceitar a morte.
No entanto, nesta narrativa distópica a lei terrestre não protege os replicants porque não os considera humanos. Espectadores diários das velocidades da evolução, aqui questionamos realidades hipotéticas nada longínquas: com que princípios tratar seres orgânicos, feitos à imagem, semelhança e escala do ser humano? Será legítimo? BLADE RUNNER convida a avaliar o conceito de Humanidade. Um clima de paranoia constrói-se ao estilo noir, entre incertezas, perseguições e a opressão constante de um controlo corporativo e policial. Os olhos são um leit-motif : quando as memórias podem ser inputs, toda a realidade está em questão. Não é claro quem é humano e quem é replicant. O ‘‘que’’ é, afinal Deckard, o protagonista ?
BLADE RUNNER parte do romance de Philip K. Dick, ‘‘Os androides sonham com ovelhas eléctricas?” e vai muito além de ser um prodígio formal de uma depuração estética memorável - este título de culto do cinema de ficção científica adensa-se no enunciar de questões de natureza religiosa, filosófica, científica, delineando dúvidas fundadoras na (in)definição do ser humano: Para onde vamos e o que nos espera?

SABRINA D. MARQUES (2014)
 escrito para Cineclube de Guimarães

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

2012 / Pedro Jordão e Sabrina Marques | NO FIM SEREMOS TODOS PRINCIPIANTES (sobre 4:44 de Ferrara)


4:44 – no fim seremos todos principiantes
Sabrina Marques e Pedro Jordão



para LA FURIA UMANA #14


PJ: Repara como ele começa por nos apresentar uma situação sem saída enquanto nos segreda que há vários caminhos até ao fim, todos em falso mas todos diferentes – mesmo no fim do mundo existem escolhas, lembra-nos. Até porque se há um fim, não é tão certo que haja uma conclusão, algo que não se pode dizer que exista quando só restam perguntas. Não se reduz o filme à captação do espírito de um tempo que é radicalmente agora, mas também por aí passa. E que melhor maneira de reflectir sobre um processo do que interrompê-lo? "Não recomeces um minuto antes do fim do mundo", diz alguém.

SM: Os olhos não se podem fechar. Na iminência do fim do mundo não se adormece. Cisco continuará a vigilância : ‘fiel a si próprio’, jamais interrompe a sua travessia ávida por informação. A corrente eléctrica nunca se desliga. E como se pudessem contrariar a deriva do corpo, sobrepõem-se os discursos sintetizados na caminhada de Cisco entre televisores, tablets, computadores e telemóveis permanentemente ligados, a emitir reflexões vagas que não aliviam a fome de saber e que, àquela hora, parecem vãs : a sua capacidade de operar uma mudança sobre a realidade é nula. A consciência da falta de acesso a qualquer verdade torna-se insustentável – a única factualidade que se apresenta é a do colapso derradeiro. Abandonados os ecrãs, Cisco decidirá procurar com os próprios olhos. De binóculos em punho, percorre janela atrás de janela para perceber como se comportam os seus pares – que comportamento pode restar ao humano nos minutos que o separam da sua destruição?

Level 5, Chris Marker, 1997




Film Socialisme, Jean-Luc Godard, 2010

PJ: O fim chega "com um aviso prévio, mas sem possibilidade de fuga" e perante o inevitável cessam todas as estratégias, e por isso todos os gestos são súbitos, imediatos, determinados pela vontade, pelo medo, pelo desejo ou pelo acaso – certa incerteza até ao final – e (quase) não parece haver pânico, apenas uma rememoração do que foi irremediavelmente perdido e uma ou outra inclinação niilista inconsumada – um pensamento suicida, a tentação do regresso à heroína há muito vencida, mas mais como expressões de desistência do que de crença na destruição. Tem-se dito por aí o que dificilmente pode ser dito – que Ferrara pende aqui para uma certa suavidade. Como se o assalto ao olhar do espectador fosse mais brando, logo ele que sempre soube ser implacável. Mais certo seria reconhecer que a faca continua encostada à garganta, mas o olhar que a orienta mudou, é mais interior, menos assertivo, mas paradoxalmente menos contornável – Ferrara já não permite que se seja apenas espectador. A violência aqui é outra. Não somos interpelados sobre os outros, mas sobre nós mesmos. De pulsão em pulsão, não há nada a não ser o aqui e agora que até agora julgávamos ser um cliché. Ferrara filma a insuficiência do livre arbítrio, não sem uma certa crueldade, mas não deixa ao mesmo tempo de filmar a resistência das personagens a essa retratada impotência de controlar os seus derradeiros momentos. Por isso, num mundo que surpreendentemente parece continuar a funcionar, as personagens perpetuam ao limite o vínculo ao quotidiano, insistem em pequenos rituais, como a barba cuidadosamente aparada por Cisco (porque Skye gosta), o registo das memórias que Cisco escreve (e que ninguém lerá,) a pintura que Skye vai criando (e que não partilhará com mais ninguém). A repetição parece actuar como uma melancólica e inconfessada celebração de uma agora distante normalidade, como se os minutos de uma contagem decrescente pudessem ignorar o seu destino. E se Cisco ainda parece obcecado com a informação, com essa ligação frágil a um mundo com fim marcado, as imagens sobrepondo-se já sem uma cronologia, Skye continua obsessivamente a criar, sobrepondo camadas de tinta, fazendo e refazendo, adivinhando-se pontualmente um círculo no que vai pintando, isolando-se do mundo, como se preparasse um casulo.


SM: 4:44 é o filme francamente contemporâneo – por múltiplas razões, mas também devido uma vocação expansiva que é simultaneamente inclusiva. Falemos de Chris Marker, que percebeu com auspicioso fascínio a irrupção tecnológica, celebrando a cibercultura desde os seus primeiros passos - no cinema dos anos 90 vimos um mundo protagonizado por seres extraordinários, os cibernautas, a viver uma aventura fantástica de navegação através da obscuridade do espaço infinito da World Wide Web. Em Level 5 (1997), a protagonista Laura é programadora informática e a sua criação aperceber-se-á da impossibilidade de cisão histórica da realidade virtual com o que a precedeu. Focado nas cidades de Tóquio e de Okinawa, Marker reflecte acerca das velocidades da expansão urbana, que parecem tentar sobrepor-se às marcas de um passado que anseia por ser esquecido, uma história colectiva de sofrimento e destruição decorrentes da participação japonesa na segunda grande guerra. Será possível sacudir de si a identidade da terra em que se vive, o que se conhece sobre a história do povo a que pertencemos, e tudo o que se passou antes de virmos a mundo? Com 4:44, Ferrara responde que não : a rede não é um lugar autónomo de uma realidade virtual que se oferece como alternativa à realidade da vida, mas essencialmente um novo modelo de continuação dessa realidade, um outro palco para a vida tal como ela se conhece. Ferrara venceu os pudores que ainda restavam acerca da inserção da tecnologia na linguagem do Cinema, e em 2012, os gadgets foram domesticados, todos os usam e fazem parte da mobília. A prova está no realismo dessa cena francamente atemorizante, em que a necessidade de pacificação da consciência de Cisco o leva a mediar por palavras uma resolução final com a ex-mulher. O virtual já não é um lugar de espectros, de deambulações sob nicknames, de escapes alternativos... Há presença no virtual – aquelas pessoas estão lá. A ex-mulher está presente (não é corpo mas é corporificação, e corresponde a uma identidade concreta). A realidade da dor de Skye, depois de presenciar esse diálogo, não terá como se atenuar minimamente porque ela não está lá fisicamente.

O espectáculo da sociedade contemporânea (para lembrar Guy Debord), a que Cisco dedica os últimos fôlegos da sua vida na Terra, é uma regressão memorial através da informação acumulada, que justapõe dados biográficos a cada uma das imagens jamais apreendidas por si, reclamando-as em pertença equivalente. O mashup absoluto, o gesto da derradeira simbiose entre tudo o que vive, com vocação de infinito. Todos os seres e gerações humanas se dissolvem uns nos outros, em perfeição, em totalidade. Todas as imagens acumuladas no arquivo da mente. Todos os eventos presenciados em todos os ecrãs justapostos numa representação absolutamente contemporânea do modelo de construção da memória individual e colectiva, inserindo a experiência singular num devir histórico em acção.


Assim, explica o Dalai Lama num ecrã, a era da informação é a era da responsabilização : o acesso disseminado ao saber faz corresponder a cada qual um papel activo de inserção na hiper-narrativa totalizante da natureza. Indica-nos que, a partir do momento em que sabemos o que se está a passar, a acção individual passa a ser responsável por tudo, todas as criaturas e causas implicadas no planeta Terra. Como se ouve no filme, não há um culpado a apontar – no fundo, somos todos porque “estamos todos no mesmo barco”. Resgatar a dimensão espiritual no Homem, explica o Dalai Lama, passaria por revitalizar o “sentido de partilha e de comunidade”. Não somos capazes de ser felizes apenas connosco, e a expansão dos sistemas de comunicação é reflexo desta necessidade (Cisco não cessa de procurar respostas fora de si, junto de gurus, de amigos, dos vizinhos...). O Um não é a unidade basilar – a união é a unidade basilar. O Um é o Todo, como explica o dragão que come a própria cauda. A História de toda genealogia humana que vai acabar é a árvore que se corta. (Com o colapso do mundo marcado para as 4:44, a narrativa humana cessará e com ela todos os seus vestígios. Agora situados no cúmulo do progresso material, e no imediato momento seguinte, o Nada... )

PJ: Quando Cisco derruba a árvore no seu sonho, o machado está na mão de todos. Cisco chega a dizer que ninguém tem culpa, mas está sempre a apontar culpados e o sonho revela que não se reconhece a si mesmo o direito à absolvição. Há uma acusação insistente, que corre de ecrã em ecrã, entre entrevistas antigas e conversas de despedida – fomos avisados. E pelo meio, um paradoxo: aponta-se muito a inutilidade das conquistas prévias, enquanto se afirma a fé no que foi destruído. Mais do que nunca, torna-se evidente que os ecrãs são mais do que meros transmissores, antes actuam como superfícies reflectoras, fragmentos de quem os olha, e naquele momento Cisco já não pensa tanto o mundo como se pensa a si mesmo. E no entanto, o seu conflito interno, ao qual não é alheia a voracidade com que ainda tenta aceder ao mundo, tem um contraponto na placidez de Skye, que parece ir vivendo as últimas horas como uma expiração. E para Cisco, Skye é o centro do vórtice – é o lugar a que sempre retorna, a amarra, a última paragem, uma zona de estranha acalmia. Como se tivesse desvendado primeiro um segredo prestes a ser revelado a todos.


SM: É claro que 4:44 assenta irredutivelmente numa negríssima fundação de sarcasmo. Porque, tal como Cisco e Skye, todos nós sabemos acerca da inevitabilidade de morrer mais cedo ou mais tarde – a única diferença é que eles sabem a hora exacta. Assim, parece ridícula a vontade de Cisco de ser certeiro no modo de gastar o último tempo, valorizando-o apenas quando ele se apresenta na eminência de se esgotar. Mas não é verdade que ele está sempre na eminência de se esgotar? Cisco questiona-se acerca do suicídio: não seria apenas uma diferença de horas? É um facto. Mas por qualquer razão inominável, no fundo ainda se mantém a espera – o ser está preso à vida. O corpo humano tende para a sobrevivência, e nem a consciência da morte o demove do projecto de se manter vivo. Esta concentração de tempo é o espaço da crença (“- Vai ficar tudo bem” diz Skye, “- E se eles estiverem errados?”, pergunta um amigo). A dúvida acarinha-se como último reduto e a finitude visível do corpo humano – que é tanto "vida morredoura” como “morte vivente”, como escreveu Santo Agostinho – depressa se suplanta pelas distintas adopções individuais da mesma estratégia de resistência. Um amigo de Cisco partilha a sua efabulação delirante acerca de um corpo renovado por chegar, um corpo com asas que arranca da superfície da terra até ao céu. Perante a eminência da morte, todos os paraísos são possíveis, todo o tipo de superações do corpo e de reconfigurações do espírito são válidas desde que dentro daquele que é, se guarde alguma conjugação do verbo “existir”. “Para quê deixar alguém mandar em ti se vais morrer?” – A interrogação de Cisco ultrapassa as fronteiras do ecrã até cada um dos espectadores. Em consideração está a medida Tempo, e a universalidade do seu valor.

PJ: Falaste em ‘espera’, e eu falei em ‘expiração’. Há por ali dois modos distintos de habitar o tempo, já foi insinuado mas tem que ser sublinhado. Cisco tenta cumprir o que resta do mundo, Skye já o deixou, interrompendo a partida apenas perante o intolerável – não o fim do mundo, mas a ameaça de perda do amor de Cisco. O amor (e Ferrara não disfarça que o filme também o declara) é para Skye um veículo mais definitivo do que a morte, uma porta de entrada para um outro plano. "Estamos juntos, vamos juntos", diz em jeito de prece pouco antes do nada, os dois deitados e unidos no meio de um círculo mais-do-que-perfeito – o Ouroboros, o dragão em círculo comendo a própria cauda, símbolo ancestral de transformação perpétua, de eterno retorno, sabotagem implícita da morte.


SM: A frase de Cisco ‘já estamos mortos’, e a de Skye ‘já somos anjos’, são contra-sensos semânticos. Relembram-nos como a partir do momento em que a consciência da morte começa a agir sobre os corpos, estes já não são vivos, já são mortos-vivos.

PJ: Ou super-vivos, como se o fim fosse inevitavelmente uma sublimação. (Já tínhamos tido, em Mary, uma personagem de Ferrara a retirar-se do mundo e fazendo da espiritualidade um caminho, mas não assim, com esta fome pelo outro, com esta carnalidade, tanto nos momentos de encontro entre os corpos de Skye e Cisco como na constante troca de roupa, enfim, de pele, que Skye executa como um ritual de transformação, de preparação para um novo ciclo.)

SM: Simultaneamente, descreve-se a sofreguidão de valorizar as ligações humanas, como na superficialidade desse momento em que Skye abraça o rapaz vietnamita e exclama um “Obrigada por te ter conhecido”. Obviamente, não é porque lhe sabe o nome ou lhe emprestou o computador que já o conhece – aliás, porquê querer saber sobre ele enquanto pessoa agora, quando até aí a sua presença equivalera a um serviço?

PJ: Ou quando Cisco, do cimo do seu terraço, exige aos desconhecidos que passam em baixo na rua que respeitem o corpo sem vida do suicida respeitando a sua última decisão, não lhe tocando e não lhe cobrindo o rosto. O que ali se recusa é o eufemismo, é tarde demais para isso, como provou aquele homem que se adiantou à hora. O que também ali se prova é que antes, como agora, o mediador mais determinante de todos não é um dispositivo electrónico mas o olhar do outro.

SM: 4:44 também é um filme sobre o Cinema. O caudal de imagens a suceder-se defronte dos olhos confirma a ditadura contemporânea do estímulo óptico. A “super auto-estrada da informação” – a expressão é de uma das personagens secundárias deste filme, Al Gore – corresponde a um museu imaginário composto pela memória da civilização. Godard ensinou-nos acerca da complementaridade na multiplicidade através das suas Histoire(s): o filme é um projecto utópico que, na sua perfeição última, seria absoluto, compreenderia em si a totalidade. Tal como esse último instante de vida, descrito pelo guru zen, em que todas as imagens possíveis se dissolveriam entre si em simultâneo, numa porta para a compreensão.
Histoire(s) du Cinéma: Toutes les histoires, Jean-Luc Godard, 1988

Será possível a salvação pelas imagens? Godard volta sempre a esta questão e, com Film Socialisme, insere-nos na era da representação; as personagens não se cansam de fotografar e filmar, e o filme multiplica-se entre infinitas estéticas através das opções que a contemporaneidade disponibilizou. As dinâmicas da relação do olhar do realizador perante as novas possibilidades da técnica  são activas e contemplativas : o realizador que olha para a câmara (que selecciona através dos seus limites o que deseja ver), volta o olhar para aquilo que a câmara viu, apercebendo-se das especificidades do contributo da máquina. O papel do realizador é o de ordenar o caos, de circum-navegar através da infinitude deste mar de imagens (uma rota fisicamente descrita em Film Socialisme). Como anotou David Phelps acerca de Film Socialisme, “Godard ignora voluntariamente a diferença entre cinema e fotografia; nunca se cansa de repetir, desde Longe do Vietname, que duas fotos bastam para fazer uma montagem, isto é, cinema.” 4:44 é também um filme sobre montagem, que problematiza a responsabilidade (da arte) de criar no meio do excesso. Na sua busca por uma pureza primordial, o filme professa uma réstia de fé na representação – esta resposta chega através de Skye, que se dedica de corpo inteiro à representação manual (contra todas as informações possíveis de ser capturadas ou difundidas pelas máquinas) : de mãos submersas no mar de cores, de contacto com a matéria-prima em bruto, Skye progride entre as manchas cromáticas que se vão mesclando, num ensaio até ao negro - ventre de onde faz nascer a sua única figura. A figura perfeita.

PJ: E no fim o branco, que se é um lugar onde nada existe, é também um lugar onde tudo pode vir a existir.