Medeia Magazine Maio Junho 2016
segunda-feira, 24 de outubro de 2016
2016 / Filmes para Cine-Concerto de Greg Foat Group // Curtas Vila do Conde 2016
FILMSTUDIE : A DESCONSTRUÇÃO DO FIGURATIVO
O Dadaísmo ou movimento Dada foi uma insurreição multiforme contra a persistência dos valores burgueses que dominavam o panorama artístico da sociedade europeia envolvida na primeira guerra. Surge em Zurique, no clube artístico Cabaret Voltaire, entre Tristan Tzara, Hugo Ball e Hans Arp, opositores à guerra e geradores de um movimento desorganizado que, na sua génese desconstrutiva, se alastrará entre a literatura, o teatro, a dança, o cinema e as artes plásticas como um projecto total de libertação de referentes, clichés e significados. Ao contrário das restantes vanguardas artísticas do início do século XX, os Dadas não propõem um estilo ordenado mas um manifesto pelo seu contrário: através do confronto e da provocação, põem em causa a sistematização e os valores estabelecidos, com iniciativas chocantes e gestos incómodos que, em última análise, questionavam a utilidade e o valor geral da arte. Hans Richter foi activo no epicentro do movimento (1916-1918) e, tal como Picabia, Duchamp, Man Ray ou Léger, é um dos pintores que utilizam o filme para estudar o movimento previamente decomposto nas telas. Em FILMSTUDIE, novas relações estéticas reordenam as formas elementares e fazem corresponder geometria e natureza, abstracto e figurativo, entrecruzando quadrados, triângulos e círculos com olhos, aves e janelas. Assinalando a saída de Richter da imagem abstracta, FILMSTUDIE distingue forma e figura, entre elementos que se entre-respondem pictórica e rítmicamente, constituindo-se como um laboratório experimental dos novos estilos, descodificados, libertos e distintos entre si. Porquê reproduzir o que já existe? Esta problemática, central aos modernismos, é uma constante em Richter que, pintor, designer gráfico e cineasta ensaia, entre a destruição e a concretização, as bases do avant-garde no cinema.
ANEMIC CINEMA, Marcel Duchamp (1926)
ANEMIC CINEMA : CONFUNDIR PELOS OLHOS
Duchamp é uma das mais emblemática figuras do Dadaísmo, apesar da autonomia de uma postura que, de tão dadaísta, recusava até o manifesto Dada e o alinhamento com o respectivo grupo. Se o seu revolucionário urinol (A Fonte, 1917) é um dos alicerces teóricos e cronológicos da arte conceptual, a permanente reinvenção de Duchamp chega até ao surrealismo e ao cinema experimental. A curta Anémic Cinéma foi realizada no estúdio de Man Ray e vem assinada pelo seu alter-ego/heterónimo Rrose Sélavy, personagem feminina fictícia criada pelo artista em 1920. O filme é protagonizado por círculos permanentemente rotativos, que Duchamp apelidou de ‘‘Rotoreliefs’’ e que evocam olhos em mutação permanente. Duchamp ataca constantemente aquilo a que chamou de ‘‘arte retiniana’’, o belo pelo belo que atravessa as várias formas artísticas e, por sua vez, procura colocar a arte directamente ao serviço da reflexão. Interpelando de imediato a atenção, as imagens visam distorcer o estímulo óptimo, dispondo numa sucessão de planos fixos, dezanove discos giratórios que desenham espirais ou dão a ver textos que ininterruptamente giram para dentro uns dos outros. À semelhança de outras obras produzidas pela vanguarda francesa dos anos 20, Anémic Cinéma insere-se nos princípios do cinéma pur, uma corrente do avant-garde (proeminente entre as décadas de 20-30) que se distinguia pela ausência de personagens e pelo desprezo pelas estruturas narrativas, em favor do estímulo sensorial e do estudo dos efeitos do movimento aplicado aos elementos e formas geométricas.
H20, Ralph Steiner (1929)
H2O : Pinturas de luz e água
H2O (1929) é um de dois poemas visuais do americano Ralph Steiner em torno de água, sendo o segundo Surf and Seaweed (1930). Contemplando os reflexos e as variações da luz e da sombra na superfície da água, este filme isola e observa, ao detalhe, a acelerada reformação de imagens nos movimentos da natureza. O tom meditativo da cadência entre os planos sugere a sucessão associativa de um exercício de montagem sensorial, endereçado à imediatez dos dados da experiência. Formam-se empáticos quadros como autênticas pinturas ininterruptas onde as imagens, em permanente ponto de oscilação, convocam uma relação afectiva. A sensação viva de beleza, decorrida da sucessão rítmica desta narrativas de luz, reconfigura a postura contemplativa do espectador. As capacidades deste envolvimento evocam os cúmulos líricos do expressionismo abstracto, com uma fluidez demonstrativa da unidade possível entre a representação figurativa e abstracta do mesmo elemento natural. Na categoria do cinéma pur pela sua atenção exclusiva aos elementos formais, alicerça as bases de um estilo poético que terá seguidores tão influentes como Brakhage ou Len Lye. Um exercício pioneiro de concentração visual que, apesar de assinalar o seu primeiríssimo contacto com as imagens em movimento, permanece até hoje como uma das mais influentes contribuições de Steiner (também fotógrafo e documentarista) ao cinema avant-garde.
Mechanical Principles, Ralph Steiner (1933)
MECHANICAL PRINCIPLES : Bailado Mecânico
Tal como H2O, Mechanical Principles (1933) segue as linhas do cinéma pur na sua constituição formal, baseada em ritmo, composição e movimento e, apesar da aparente disparidade entre os filmes, ambos se concentram, em primeiro lugar, no estudo do ritmo. Estes Princípios Mecânicos constituem-se como uma investigação sobre a repetição e o automatismo da maquinaria e da mecânica. Cada detalhe elide o todo, abstraindo-se dos propósitos úteis destas estruturas e engenhos. O impacto é imediato. O fascinante resultado desta concentração é a inesperada vitalidade que nasce deste mundo sintético, no hipnotismo de uma dança pendular de aços, engrenagens, tubos e rodas dentadas. Apesar da artificialidade dos mecanismos, o seu retrato é delicado e distante da aparente frieza. Este elogio da máquina evoca as linhas gerais do Futurismo mas sem a ‘‘violência arrebatadora e incendiária’’ do seu manifesto. Uma cativante beleza brota destas paisagens metálicas em plano aproximado e sublinha a fluidez rítmica que, com optimismo, celebra o futuro do homem pelo progresso técnico.
LICHTSPIEL OPUS 1 (1921)
LICHTSPIEL OPUS 1: O abstraccionismo empático
Walther Ruttmann é, a par de Viking Eggeling e de Oskar Fischinger, um dos pioneiros alemães do cinema experimental. Entre 1921 e 1925, produziu, realizou, animou e editou uma série de quatro ‘‘Lichtspiel Opuses’’, contribuindo decisivamente para um conjunto de inovações técnicas e criativas que ajudaram, na Europa, a elevarao cinema ao estatuto de sétima arte (recordando que o Manifeste des Sept Arts de Canudo sairá apenas em 1923). Efectivamente, a génese experimental do cinema avant-garde recebe a influência directa dos movimentos modernistas e o primeiro título da série é um ostensivo herdeiro dos abstraccionismos e dos construtivismos. A partir de figuras pintadas sobre vidro, Ruttmann cria uma forma primitiva de animação, popularizada como a primeira animação a ser exibida em sala. Sem se circunscrever num enunciado acabado, faz contrastar uma variedade de formas e de cores em mutação constante, que fluem num movimento orgânico e apaziguador. Através de Lichtspiel Opus I, Ruttmann responde genialmente a uma das mais iniciais críticas à arte abstracta: a acusação simplista de que, na ausência de realismo num estilo artístico, deste se deduz a incapacidade de estabelecer empatia com o receptor. De todos os opuses de Ruttmann, este é talvez aquele que mais procura encontrar-se com o espectador: a sucessão de sequências coloridas conduz-se de uma forma fundamentalmente ordenada, comprovando a intenção narrativa para lá da multiplicidade de legendas possíveis.
LICHTSPIEL OPUS 2 (1923)
LICHTSPIEL OPUS 2: Orgânico versus Geométrico
Lichtspiel Opus II complexifica o título predecessor. Na sobriedade de uma nova paleta, o ritmo acelera-se e os ângulos rectos dos quadrados e rectângulos parecem ameaçar as curvas orgânicas das formações arredondadas. Das várias formas que colidem destila-se a mesma origem - o ponto, primeiro tema de estudo de Lichtspiel Opus II. De novo alicerçado nos ideais do movimento construtivista, Lichtspiel Opus II é enfaticamente material e assenta, precisamente, na ideia da arte como construção, investigando os elementos-base da gramática figurativa e elogiando o gesto construtor. Os padrões reformulam-se sobre os fundos escuros que falam da forma como matéria-prima da imagem, em ponto de mutação constante. A simplicidade formal das novas obras evoca a expansão industrial, onde a precisão dos desenhos técnicos é a base indispensável para cada nova construção. Nome essencial do cinema avant-garde, Ruttmann deixou simultaneamente um legado na música. Com Piscator, trabalhou em ‘‘Melodia do Mundo’’ (1929) mas celebrizar-se-ia com ‘‘Berlim: Sinfonia de uma grande cidade’’ (1927), a sinfonia urbana que dedicou à Alemanha. Ainda que o construtivismo tenha influenciado decisivamente a arquitectura e o urbanismo alemães, principalmente inscrito nos contributos da Escola de Bauhaus (subsidiada pela República de Weimar), com a ascensão do nazismo, os preceitos vanguardistas da escola de Gropius são rejeitados por ‘‘anti-germanismo’’. É neste contexto que, após a inventividade das suas abstracções, Ruttmann recua nas suas liberdades para ceder às pressões com que Goebbels previa que a arte do Terceiro Reich fosse mais inteligível ao povo alemão, de estética conservadora e focada no retrato heróico da Alemanha nazi.
LICHTSPIEL OPUS 3 (1924)
LICHTSPIEL OPUS 3: De Tatlin a Ruthmann
Decorrido do futurismo italiano e do cubismo francês, o construtivismo surge na União Soviética, por volta de 1913, com Vladimir Tatlin na frente de um movimento que, através da arte, celebra a máquina, a tecnologia e o utilitarismo, procurando ‘‘construir arte’’. Igualmente radical, Malevich propõe um "mundo da não-representação" e abre caminho para a morte da figura. Em 1927, expõe 70 obras suas em Berlim e o seu ensaio O suprematismo ou o mundo sem objecto é publicado pela Bauhaus. Tatlin é igualmente apreciado entre os estudantes alemães e, em 1920, Grosz e Heartfield são fotografados a segurar uma placa onde se lê ‘‘A arte está Morta - Vida Longa à Máquina de Tatlin’’. Esta é a Alemanha de Walther Ruttmann, estudante de arquitectura, pintura e design, disciplinas a que uma precursora Bauhaus aplica os princípios modernistas. O abandono progressivo, por Ruttmann, da abstracção da sua série Lichtspiel Opus para trabalhar a partir da realidade da paisagem urbana em Berlim: Sinfonia de uma grande cidade argumenta como, independentemente da ideologia que lhe subjaz, a ditadura estende-se à manipulação da arte e da cultura para fins propagandísticos. Distintamente, a ascensão dos regimes fascistas na Alemanha e na Itália e comunista na URSS, significou a repressão das vanguardas e a exaltação de um princípio de realismo que procura, não a interpretação subjectiva da obra artística pelo espectador, mas a sua compreensão imediata pelas massas. Na sua ‘‘inconveniente’’ abstracção, este Lichtspiel Opus III dá seguimento ao estudo prévio da série de Ruttmann das relações entre formas, cores, geometrias e figuras.
LICHTSPIEL OPUS IV (1925)
LICHTSPIEL OPUS IV: A Geometria Imperfeita dos Jogos de Luz
Lichtspiel Opus IV, último episódio da série de Ruttmann, é o mais depurado e minimalista dos quatro. Um padrão frisado a preto e branco multiplica ritmicamente um desenho composto por sucessivos rectângulos até que uma amorfa figura arredondada surge, adicionando cor e interrompendo a fixidez rectilínea das figuras prévias. O desenvolvimento progressivo desta série experimental ao longo de quatro anos, permite a Ruttmann aperfeiçoar autonomamente as suas técnicas de animação e estudar a musicalidade decorrente da continuidade visual. Face às restantes curtas, Lichtspiel Opus IV é a que mais próxima se encontra do princípio construtivista do automatismo. Trabalhando com a sobreposição de elementos, constrói padrões em movimento que, primeiramente, reflectem a relação de correspondência entre a luz e a cor, ou de oposição entre horizontal e vertical, entre recto e curvilíneo. Apesar do relevo dado à figura geométrica ao longo das várias experiências, a dimensão artesanal da produção destes filmes espelha-se na relativa imprecisão dos seus contornos. O resultado de cada um destes Lichtspiel ou jogos de luz revela a manualidade de um processo que, no cintilar da projecção, transporta a permanente capacidade de convocar no espectador múltiplas reacções afectivas.
domingo, 2 de outubro de 2016
2016 / ''Entre Doisneau & Mapplethorpe: Não há imagens inocentes''
Entre Doisneau & Mapplethorpe: Não há imagens inocentes.
para FESTIVAL DO RIO 2016
Sabrina D. Marques
1.APARÊNCIA DE REALIDADE
‘‘Doisneau: le révolté du Merveilleux'' de Clémentine Deroudille e ‘‘Mapplethorpe: Look at the Pictures’’ de Fenton Bailey e Randy Barbato trazem ao Festival do Rio 2016, olhares muito distintos sobre os processos de dois fotógrafos tão diferentes como Doisneau (1914-1994) e Mapplethorpe (1946-1989) e, subitamente, estes surgem-nos mais próximos do que nunca. As perfeitamente encenadas fotografias de estúdio que celebrizaram Mapplethorpe reúnem-se com as perfeitamente encenadas fotografias de rua que celebrizaram Doisneau, num projecto geral de mîse-en-scène que, por sua vez, os aproxima do método cinematográfico.
2. DOISNEAU, A DESCONSTRUÇÃO DO MÉTODO
Chegamos a um dos mais sonantes nomes da história europeia da fotografia, Robert Doisneau, através de um retrato íntimo realizado pela neta. E se é comum que nos surja apresentado como fotógrafo do inesperado, por capturar a agitação das ruas de Paris, ou como fotógrafo do amor, por ter guardado algumas das imagens que melhor construíram a aura romântica da Paris que habitava, este ‘‘maravilhoso’’ em que participam as suas imagens é, na verdade, um valor menos encontrado e mais construído. Autor de algumas das mais icónicas fotos do século XX, inscreveu o seu legado num lugar indefinível que - para usar a bela expressão de Manuela Penafria - se poderia apelidar de documentira. Susan Sontag poderá ajudar-nos a perceber o que não nos é imediatamente óbvio: ‘‘As fotografias guardam detalhes. Por isso, as fotografias parecem-se com a vida.’’ É, por isso, fácil ao espectador confundir a qualidade inesperada das fotografias que observa, com documentos raros capturados no agudo instante de uma passagem. Uma fotografia grava apenas a aparência. Ao revelar o processo de produção destas imagens, este documentário permite ao espectador o acesso aos detalhes de um contexto que estão dissimulados na própria imagem, adicionando a informação que permite deslindar essa mesma dissimulação. No fundo, ensinando-nos como ver é, por princípio, estar imediatamente disponível para acreditar no que se vê.
Presente no festival, Jan Vasak, produtor de ‘‘Robert Doisneau: le révolté du Merveilleux’’, esclarece-nos como estes aparentes ‘retratos de situação’ encobrem o projecto geral de mîse-en-scène em que assentam:‘‘A revista LIFE encomendou os Amantes de Paris. Mas, nos anos 50, os namorados não se beijavam nas ruas de Paris. Esta visão ‘nós somos franceses, somos românticos e beijamos toda a gente’ não é assim tão simples, e nos anos 50 ainda era menos - as pessoas não se beijavam na rua. Mas a imprensa americana tinha vontade de exprimir no seu jornal esta visão de uma Paris romântica. Então, Doisneau decidiu pegar em dois actores e fotografá-los por todo o lado em Paris. No meio destas fotos, há o Beijo do Hotel da Cidade. Uns anos mais tarde, a responsável por uma sociedade de edição de postais, encontra esta magnífica foto. A foto dá a volta ao mundo e torna-se o emblema dos amantes de Paris, o emblema de Doisneau. No momento dos atentados de Novembro, a foto foi ampliada, impressa e colocada na praça da República. É o símbolo da Paris que se ama, em fraternidade e em liberdade.’’
3. A MÎSE-EN-SCÈNE ÓBVIA E NÃO ÓBVIA
Saber mais sobre a intenção que precede o gesto coloca-nos no fora-de-campo da própria imagem fotográfica. Este ultrapassar dos limites do quadro que encaramos, reajusta a sua leitura, esclarecendo como o próprio meio que vemos (a imagem) molda o nosso modo de ver. Ao contrário de Mapplethorpe, o estúdio de Doisneau era a rua. Fotógrafo-flanêur, não lhe conseguimos recordar uma fotografia que não seja protagonizada por pessoas - gesto que, de imediato, denuncia um compromisso com um fundo de realidade e uma permanente disponibilidade para as variações da alteridade humana. Mas o aparente esquema de observação do quotidiano encenado por Doisneau oblitera o princípio de encenação que geralmente o constitui e, produz imagens que passam por documentos da realidade quando têm apenas a realidade como referente. Não estamos em Paris - estamos na Paris de Doisneau.
4. O PERIGO DA BELEZA
A reconstrução do espaço público a partir da modelação desse mesmo espaço público, progressivamente conduzida por Doisneau, decorre de uma intenção declarada de aperfeiçoar a realidade através da criação fotográfica. Porque a fotografia cria memória, este um gesto consciente - a fotografia é uma ficção da mesma forma que a memória é uma ficção. É necessário ver para lá da óbvia plasticidade: a calma e a tranquilidade que estas imagens perpassam, veículos de uma adocicada visão poética da vida, carregam também um nocivo convite ao conformismo. Se nada há a mudar no que é supremamente belo, não devemos moralmente fugir de embelezar os mais críticos contextos políticos e sociais?
5. DOISNEAU: ESTA É A PARIS ONDE EU QUERO VIVER
Há hoje, em França, ruas e escolas primárias baptizadas em honra de Doisneau, assinalando a sua atenção às crianças que povoavam as ruas, e os inúmeros postais e calendários dos seus famosos casais a beijar-se ressurgem a cada recanto nas lojas de souvenirs. Alinhou as suas séries ao longo de 20 photo-books, criando relações através da montagem, que nos recordam da defesa da série fotográfica como cinema demonstrada pelo seu contemporâneo e conterrâneo Chris Marker em La Jetée (1962). Na obra de Doisneau, as relações de aproximação ao cinema não se esgotam aí. A mîse-en-scéne é o seu laboratório permanente, progressivamente retrabalhando a imagem fotográfica enquanto linguagem produtora de encantamento. Consciente das possibilidades da fotografia enquanto recurso publicitário, Doisneau produz imagens perfeitas perpassadas por um repetitivo romantismo comercial que usa a fotografia, acima de tudo, para produzir ‘objectos de desejo’.
6. DOISNEAU E MAPPLETHORPE: PONTOS DE CONTACTO\
Recorrentemente descrito como um caçador de imagens, Doisneau é mais precisamente - tal como Mapplethorpe - um encenador de imagens. Se Mapplethorpe é, entre outras coisas, um dos mais celebrados retratistas de celebridades, coleccionando poses de stars, Doisneau pagaria a actores para encenar a França onde todos gostariam de viver. Cientes de que a fotografia impõe cultura sobre a cultura, constroem obras dirigidas às massas mas antecipadas por intenções muito distintas. A fotografia de Doisneau testemunha uma utilização estratégica da fotografia no sentido da teatralização controlada do real que preservava todos os indícios de verosimilhança. Por sua vez, a construção do nova-iorquino Mapplethorpe consistia numa performatização exagerada de rostos, corpos e gestos que, desafiando a sua época com demarcado sentido de risco, criavam imagens explícitas da homossexualidade, do travestismo ou do sadomasoquismo gay. Independentemente dos temas íntrinsecos a cada um, não deixavam ambos de dirigir-se às massas, integrando a produção de imagens numa lógica de mercado.
7. NÃO HÁ IMAGENS INOCENTES
Tal como não há inocência no gesto de fotografar, também não há imagens inocentes. É aí que o título do documentário ‘‘Doisneau: le révolté du Merveilleux’’ erra fatalmente na sua renomeação à posteriori - não há margem para vestígios de revolta nessa exaltação do Maravilhoso. Apesar das similaritudes, reflectir sobre o lugar no presente de dois fotógrafos tão diferentes como Doisneau e Mapplethorpe é, afinal, abrir uma fenda entre um clássico e um contemporâneo. Se é inegável que ambos avançaram tecnicamente na fotografia, enquanto a obra de Doisneau se instala no exercício das convenções estéticas e temáticas, a de Mapplethorpe questiona-as. A que lugar pertence a ideia de Belo na arte contemporânea?
8. AUTORIDADE E AUTORIA
Recordemos Susan Sontag quando explica como as ‘‘imagens produzidas por câmaras são o principal acesso às realidades das quais não temos referência directa.’’ Mas é porque qualquer câmara - fotográfica ou de filmar - não se opera sozinha que devemos sublinhar Alan Sekula quando este escreve que, irremediavelmente, qualquer fotografia transporta uma ‘‘mensagem que incorpora um argumento’’ - mensagem esta que poderá ter uma panóplia de leituras distintas consoante o contexto. Assim, não é possível deduzir simplemente de Doisneau uma raiz política conservadora ao sabermos que as mesmas fotos - nomeadamente as suas composições de família - tanto eram compradas por publicações de direita como de esquerda. Capaz de enformar o nosso pensamento e dirigir o nosso olhar para onde quer, a imagem é activa. Consoante o contexto, esta acção pode ser uma manipulação.
9. FOTOGRAFIA, O TURISMO COMUM
Se aconteceu que a cidade mais turística do mundo fosse também o local de nascimento da fotografia (e o berço europeu do cinema), adivinhamos que Paris tenha sido a primeira cidade a promover o coleccionismo de postais. Como outros fotógrafos, foi a estratégia de divulgação do seu trabalho em formato-postal o que possibilitou ao parisiense Doisneau a continuidade do desempenho profissional da fotografia e o que, numa fase tardia, lhe trouxe uma notoriedade popular. Na entrevista que dá a Régis Debray em Iténeraire d’un Cinéfils (Pierre-André Boutang e Dominique Rabourdin, 1997), Serge Daney confessa-se ávido coleccionador de postais e chama-lhe cinefilia. Tal como stills de filmes, os postais relacionam-se com a fotografia e com o cinema enquanto pontos-de-partida de uma viagem. A imagem é uma porta de imediata expansão do mundo, de transporte instantâneo para outra realidade - de tal forma, que Susan Sontag afirmaria que ‘‘a fotografia é a mais soberana forma de turismo’’.
10. TIRAR FOTOGRAFIAS / FAZER FOTOGRAFIAS
Sérgio Mah escreveu que uma coisa é tirar, outra coisa é fazer fotografias. Há um peso a sublinhar nessa intencionalidade do "fazer", notando como esta dimensão construída se encontra intimamente relacionada com o cálculo do custo inerente à produção de uma imagem. Com as possibilidades do digital, ao disseminado hábito de ‘‘tirar fotografias’’ corresponde um exercício de pós-produção: hoje, o tempo é gasto depois, num exercício selectivo que navega no interior de uma enorme quantidade de fotografias acumuladas, substituindo a reflexão que antecedia o fotografar no suporte analógico. Para lá de espectadores da arte fotográfica somos, mais do que nunca, agentes activos num processo contemporâneo de redefinição do conceito de fotografia, centro em mutação permanente. Quem é fotógrafo numa sociedade em que toda a gente fotografa? No seu Ensaio sobre a Fotografia, Flusser, escreve que ‘‘De modo geral, toda a gente possui um aparelho fotográfico e fotografa’’, mas com hábitos que ‘‘eterniza(m) a automaticidade insconsciente de quem fotografa’’.
11. O PENSAR E O FAZER
Apesar de estilisticamente desiguais, ambos os filmes garantem o teor informativo que se espera de um documentário biográfico mas, como tantas vezes acontece neste formato, não se preocupando formalmente em estar à altura do homenageado. Certo é que, melhor ou pior, temos acesso a um retrato de contexto e, no exercício de comparar os dois fotógrafos, reconhecemos como avançaram tecnicamente no suporte artístico em que criaram mas, utilizaram o mesmo medium para responder de formas muito distintas à sua realidade. Perante a ininterrupta diversidade de acções possíveis, é consciente de que não existem imagens inocentes, que Nicole Brenez deixa um conselho prescrito à epidemia da velocidade disseminada pela criação contemporânea:‘‘há que manter permanentemente presente a questão: qual é o propósito de fazer uma imagem ou de não fazer nenhuma?’’
segunda-feira, 5 de setembro de 2016
2013 / ''Pialat & Van Gogh - Fellow Outsiders''
my essay for Eureka Entertainment / The Masters Of Cinema
https://www.eurekavideo.co.uk/moc/van-gogh
on Van Gogh, Maurice Pialat, 1991
domingo, 13 de março de 2016
2016 / L’Ombre des Femmes: nunca tão longe das liras
‘‘Numa encruzilhada do coração / não há templos para Apolo.’’ RAINER MARIA RILKE
L’Ombre des Femmes é um Garrel no estado último do desencanto. E nós com ele: rapidamente sufocamos no interior destas relações amorosas reduzidas ao alicerce mais prosaico das suas existências materiais. Sofremos com a repetida mundanidade dos seus recantos físicos e cronológicos, e descremos na possibilidade de encontrar uma qualquer verdade no meio desta sinfonia de banalidades. O que sustém a rota destes corpos de cama em cama? Num fundo de sofreguidão, sente-se um desfoque, uma suspensão do ‘‘eu’’, uma falta de rumo que a todos une. A languidez decorre da fadiga, ou assim parece. Na exaustão de quem assiste à vacuidade destas danças, convenço-me de que há compreensões a que nunca chegarei: o que fazemos a nós próprios em nome dessa suposta ideia de amor?
Idas as horas do garreliano lirismo: com ‘‘L’Ombre des Femmes’’, o mestre do atemporal romance em filme a preto-e-branco tira-nos o que nos deu. Reduz o amor a um sistema de posses e de expectativas, e tapa o último feixe de luz: tudo se ensombra com ciúmes, negociações, traições, revelações, cache-cache, separações e o desamor último, que lança cada um para a sua solidão. Nenhuns estão bem juntos nem separados, logo, nenhum dos desenlaces possíveis é um final feliz. Porque afinal, nisto do amor, aprendemos, não há finais felizes. Neste cenário, a música não tem por onde acontecer. A poesia vive dos véu de Apolo e, aqui, a realidade é demasiado real. A precariedade deste quotidiano secou qualquer fundo de beleza, tão dependente do mistério. Se não parece, é porque não é - esta não é a casa de um romance.
O anterior ‘‘Jalousie’’ já nos tinha deixado no travo amargo desta decadência costurada. E em ‘‘L’Ombre de Femmes’’, para vincar ao extremo o argumento, há o exemplo contrapontual que dá aos protagonistas o espelho que não usam: o velho casal (do qual conhecemos apenas o nome do homem, o ‘‘resistente impostor’’) no seu quadro de farsa desvelada no fim. O que Garrel parece enunciar é que a farsa é total e que o amor para sempre não existe - o que une esses casais ao longo de uma vida só pode ser (mais uma) história que eles se vão contando e acreditando.
sábado, 24 de outubro de 2015
quarta-feira, 29 de abril de 2015
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