STRAUB
& HUILLET: A MÚSICA EM ELOGIO PERMANENTE
Crónica de Anna Magdalena Bach: O filme que Straub sempre quis fazer
Poucos cineastas fizeram,
como o par Straub-Huillet, da música uma matéria-prima de tão central
importância. A sua terceira longa-metragem, Crónica
de Anna Magdalena Bach (Chronik der Anna Magdalena Bach, 1968), seria a
materialização de um dos mais antigos projectos de Jean-Marie Straub. O rigor
do trabalho preparatório levaria a Straub dez anos de idealização detalhada:
esta (des)construção propunha-se a utilizar os meios do cinema para encarar o
projecto único de “usar a música não como acompanhamento, nem como comentário,
mas como matéria estética”, sendo o centro modelador da narrativa e da mise-en-scène. Uma relação dialéctica
dos vários ritmos alicerça a densidade única de um filme que, entre sinfonias e
cantatas, ainda assim persegue uma constante depuração estética. ‘‘O meu maior
temor no Bachfilm’’ assume Straub
‘‘era justamente que a música criasse picos no filme: ela deve permanecer no
mesmo plano do que o resto.’’
Este Bachfilm inaugura um processo
de eliminação de intenções, assumindo um projecto de não-narração. “Eu sei
que a música é incapaz de exprimir o que quer que seja” disse Stravinski, que
Straub recorrentemente cita para evocar uma crença convergente, a de que o cinema também não é capaz de
exprimir nada (diria em entrevista aos Cahiers du Cinéma em 1966). Retrocede-se
para avançar e esta abordagem analítica envolve-nos num exercício de permanente
esvaziamento de signos, clichés e significados, no estímulo intelectual de uma
experiência cinematográfica mais próxima
da origem e que, simultaneamente, homenageia o próprio cinema e colide
necessariamente com certos caminhos tomados pelo cinema ou que se fazem passar por cinema.
Através de Chronik, a pesquisa de Straub e Huillet
compôs um outro retrato do contexto de Bach: vários manuscritos atribuídos ao
compositor alemão, tinham sido, de facto, recopiados pela segunda mulher, Anna
Magdalena e restam ainda dúvidas acerca da autoria das peças. Estes documentos
de época surgem facsimilados e são protagonistas de um filme que endereça,
sobretudo, a memória, construindo um mundo de Bach próximo das formas de Bach.
Se nos é dito que o compositor perdeu a visão e que, por isso, ditou os seus
últimos trabalhos, esta descrição biográfica encontra um peso paralelo na
presença da música sobre a imagem. Neste sempre balançar dos elementos, Danièle
Huillet definiria esta ‘‘parença a Bach, como um total equilíbrio encarnado
(...) sem divórcio entre a arte, a vida e o intelecto, entre a música profana e
a sagrada.’’
Este drama descreve ideias velhas combatidas com ideias novas,
protagonizado pela persistência de um homem que luta com as armas do seu tempo,
contra as estruturas estabelecidas da arte e dos contextos em que a arte era
produzida. ‘‘A paciência e a violência escondem-se na arte do próprio
Bach’’, afirmou Jean-Marie Straub, aludindo à potência interventiva da música
como veículo revolucionário, didáctico mas não tautológico. E é, precisamente,
nesta análise da acção de um criador que estrutura uma meditação maior sobre o
acto de criação e de significação que é construir um filme. Em Chronik, a
imagem é construída para participar das virtudes da música: sente-se a sua depuração estética, e a força de cada imagem, composta com um rigor e uma beleza
estudados, encontra o seu encadeamento, o seu tempo, o seu ritmo sem se
sobrepor ao som.
Em entrevista, Huillet
afirmava um dia não suportar ‘‘quando a música é utilizada para que a imagem
diga algo que não disse''. O edificar deste filme rima com a intenção de
mostrar a construção musical como um processo dialéctico de fundação material,
definidor de um compromisso de participação no mundo. A narrativa do filme
progride temporalmente no interior um
corpo de trabalho de dois autores sintonizados, Bach e
Magdalena, alinhados em permanente ponto de
construção: se começámos por ver pautas anotadas à mão, em seguida vemos as
pautas impressas que assinalam a passagem do trabalho individual à apresentação
pública desta música. Chronik
funda-se no movimento do particular tornado universal. No equilíbrio dialéctico
entre a vida privada e pública do indivíduo em sociedade, a arte é encarada
como a expressão posta em comum, com o compromisso de uma intervenção no espaço
público.
Tal é o esforço
protagonizado por Bach, constantemente em debate com a tarefa de criar, que o
espectador espelha a sua experiência neste mesmo esforço de absorção, diante
deste filme feito com tão novos eixos. Chronik é
um filme de mãos, de braços, de olhos, de pés: respeitando os tempos da
execução e da criação, o plano conduz-nos, por várias vezes, até junto da
concentração absoluta de Bach, curvado sobre um teclado de cravo ou a tocar um
cravo ou orgão embutido, e observamos de perto aquele processo de técnica e de
minúcia que Straub designa com a expressão grega akribeia. O par almejaria esta mesma precisão na hora de
seleccionar quem devia interpretar Bach (o cravista holandês Gustav Leonhardt)
e Anna Magdalena (Christiane Lang, no seu único papel em cinema) e a edificação
deste projecto usufrui das brechas da História. À distância das figuras
misteriosas de um compositor do qual não ficou um único objecto pessoal e de
uma mulher da qual não sobrou um retrato apenas, as possibilidades de escolha
foram matéria-prima da liberdade de construir um filme alicerçado numa
narrativa histórica, que assim prossegue segundo princípios de realismo, mas
sobre uma sucessão romanceada de acontecimentos. Com uma história de amor por
base, navegamos no interior de um legado artístico onde é, ainda hoje,
indiscernível o que foi da autoria de Bach ou de Magdalena.
Uma correspondência que,
adiantada por este filme, espelharia aquilo que viria a ser a cumplicidade do
casal Straub-Huillet, cujo fluxo de pensamento e de criação se conjugou, com um
radicalismo uníssono, sobre a estruturas basilares do cinema. Deixaram, em
forma de filmes, os frutos públicos de uma rara e produtiva cumplicidade
intelectual (que viria a ser belíssimamente retratada no documentário de Pedro
Costa, Onde jaz o teu sorriso (de
2001) - título que evoca um graffiti que surgiria no início de Von Heute ao Morgen, de 1996).
VON
HEUTE AUF MORGEN: Sobre as mulheres
Tal como haviam feito no Bachfilm, ao filmar De hoje para Amanhã
(Von Heute ao Morgen, 1996), Straub e Huillet defendem incondicionalmente o som
directo, buscando "captar ao mesmo tempo o canto e o corpo que
canta". Cria-se assim, um bloco de trabalho encaminhado para a missão de
limar todo o artifício, unindo o som à imagem (e impedindo o exercício
manipulador de, posteriormente, cortar e colar arbitrariamente na montagem -
truque da pós-produção em
camadas a que Straub chamava de fazer ‘‘sopa sonora’’).
O projecto de desconstrução da ilusão é
endereçado no início do próprio filme, que começa por nos mostrar a presença de
uma orquestra num estúdio onde está montado um cenário, e o movimento
panorâmico da câmara revela ainda as cadeiras vazias de uma plateia de teatro.
Efectivamente, eram 70 os músicos permanentemente presentes atrás das câmaras
e, tal como recordou António Rodrigues na sua análise a este filme gravado inteiramente em estúdio, tal ‘‘como num palco de
teatro, o espaço é uma caixa fechada por todos os lados menos um.’’ Esta ópera
num só acto, da autoria de
Arnold Schoenberg (e seria a terceira "incursão" dos cineastas
na obra do autor vienense), dá-nos acesso a um quadro progressivo da crise que
se instala entre um marido e uma mulher que regressam de uma festa e meditam
sobre a conjugalidade. O resultado é
‘‘nem totalmente naturalista nem totalmente abstracto, nem totalmente
quotidiano nem totalmente teatral, algo «entre les deux»’’. No genérico de Von Heute auf Morgen, é a primeira vez
em que o nome de Danièle Huillet aparece antes do de Jean-Marie Straub, o que
nos recorda de que o libretto alemão desta ópera é assinado
por Max Blonda, o pseudónimo de Gertrud Schoenberg, a mulher de Arnold
Schoenberg. E se o seu Crónica de Anna Magdalena Bach era “a história de uma mulher que amou o marido até à morte” este Von Heute auf Morgen, conduzido pela
rédea puritana de Danièle, foi "uma
ocasião de trabalhar sobre uma obra feita sob o ponto de vista da mulher".
Sobre uma estrutura musical complexa,
assenta uma contemporânea comédia de costumes onde a aparente
banalidade temática levanta questões funcionais de primeira ordem. Perante uma
sociedade que se replica com o modelo de casal como unidade com funções sociais
basilares, em causa permanece o indivíduo, o mínimo denominador filosófico, e
as estruturas da auto-determinação, do princípio do direito à felicidade, etc.
A problematização levanta sucessivos conflitos morais que as cenas prolongam de
um dia para o outro. Mas, de um dia para o outro, tudo muda para um novo
regresso do casal à homeostasis.
O impasse calculista desta mulher que são
duas - dividida entre a sedução de parecer feminina perante o marido e a
responsabilidade de ser mãe - é interrompida pela inocente pergunta da criança
‘‘Mamã, o que são os homens modernos?’’. Com esta frase dita e não entoada, interrompe-se
a cantata e o ritmo altera-se subitamente. Concentrados na música de
Schöenberg, situamo-nos num além-tempo, na fenda entre o passado e o futuro.
Por onde começamos a libertar-nos do peso da tradição?
Einleitung
zu Arnold Schoenbergs Begleitmusik zu einer Lichtspielscene:
Na sua curta-metragem Einleitung zu Arnold
Schoenbergs Begleitmusik zu einer Lichtspielscene (Introdução a ‘‘Música de acompanhamento para uma cena de
um filme’’ de Arnold Schoenberg, 1972), Jean-Marie Straub fita-nos enquanto explica
o grau de detalhe com que Schoenberg deixa estritamente expressas indicações
para as suas óperas. O seu objectivo, diz-nos, era ‘‘conter o caos’’ que
diagnosticava ao seu tempo, mas em Música de acompañamiento por una escena del filme (escrita na Alemanha entre 1929 e 1930), o judeu Schöenberg deixa apenas quatro palavras: ‘‘Perigo ameaçador, Medo,
Catástrofe’’. O seu pessimismo, resultado das perseguições anti-semíticas de
que foi alvo até ao exílio para os EUA que se seguiria, convocam a perplexidade
que exprime aos seus pares: “Porque é que um ariano é julgado por Goethe,
Schopenhauer e por aí em diante? Porque é que as pessoas não dizem que os
judeus são como Mahler, Altenberg, Schonberg e tantos outros?’’ A luta de Schöenberg é solitária e tem a clareza de um homem que precisaria
de ser provado pela justiça do futuro. É sua a voz da razão com que combate os
seus mais proeminentes contemporâneos, toldados pelo espírito nefasto do lugar
e do tempo. Moses und Aron (Straub-Huillet, 1973) seria a adaptação homónima da ópera de Schoenberg, uma resposta dramática em três actos aos movimentos anti-semíticos e uma alusão à sua própria fuga da Aústria para a Alemanha, e depois para os EUA (apesar de se ter convertido ao Protestantismo em 1898). O génio austríaco, criador do dodecafonismo, um dos mais influentes estilos de composição erudita do século XX, trabalharia até ao fim, organizando pela arte um mundo em catástrofe. Nesta adaptação ao cinema, Moisés protagoniza um monólogo baseado nas notas de Schoenberg, momento sem música no fim do terceiro acto que resgata escritos de Schoenberg, à imagem do que Straub fizera no ano anterior em Música de acompañamiento por una escena del filme.
Esta concretização
encontra-se com o materialismo convergente de
Straub-Huillet, brotado de uma fenda radical que é desferida na evolução do
cinema, e que propõe uma incansável reflexão sobre os mais definidores
alicerces da estrutura e da técnica. De filme para filme, os cineastas repensam
o osso da linguagem cinematográfica, destilando até à pureza os elementos que
se adicionam para compôr um filme. ‘‘E o que é um filme?’’ perguntou um dia
Straub. Interpelados pelo dever de permanentemente participar nesta pergunta em
suspenso, a cada novo filme acedemos ao brechtiano convite de construir,
individualmente, o nosso lugar enquanto espectadores. Um lugar analítico que, a
requerer um postura crítica, deve desconfiar do cinema - e de permanentemente
perguntar-lhe (poderia dizer João César Monteiro, o primeiro crítico de cinema
a defender Straub em páginas portuguesas e cineasta tão melómano quanto o casal
Straub-Huillet) acerca dos porquês de ser assim
e não assado.
SABRINA D. MARQUES
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