segunda-feira, 24 de outubro de 2016

2016 / STRAUB & HUILLET: A MÚSICA EM ELOGIO PERMANENTE








STRAUB & HUILLET: A MÚSICA EM ELOGIO PERMANENTE

Crónica de Anna Magdalena Bach: O filme que Straub sempre quis fazer
Poucos cineastas fizeram, como o par Straub-Huillet, da música uma matéria-prima de tão central importância. A sua terceira longa-metragem, Crónica de Anna Magdalena Bach (Chronik der Anna Magdalena Bach, 1968), seria a materialização de um dos mais antigos projectos de Jean-Marie Straub. O rigor do trabalho preparatório levaria a Straub dez anos de idealização detalhada: esta (des)construção propunha-se a utilizar os meios do cinema para encarar o projecto único de “usar a música não como acompanhamento, nem como comentário, mas como matéria estética”, sendo o centro modelador da narrativa e da mise-en-scène. Uma relação dialéctica dos vários ritmos alicerça a densidade única de um filme que, entre sinfonias e cantatas, ainda assim persegue uma constante depuração estética. ‘‘O meu maior temor no Bachfilm’’ assume Straub ‘‘era justamente que a música criasse picos no filme: ela deve permanecer no mesmo plano do que o resto.’’
Este Bachfilm inaugura um processo de eliminação de intenções, assumindo um projecto de não-narração. “Eu sei que a música é incapaz de exprimir o que quer que seja” disse Stravinski, que Straub recorrentemente cita para evocar uma crença convergente, a de que o cinema também não é capaz de exprimir nada (diria em entrevista aos Cahiers du Cinéma em 1966).  Retrocede-se para avançar e esta abordagem analítica envolve-nos num exercício de permanente esvaziamento de signos, clichés e significados, no estímulo intelectual de uma experiência cinematográfica mais próxima da origem e que, simultaneamente, homenageia o próprio cinema e colide necessariamente com certos caminhos tomados pelo cinema ou que se fazem passar por cinema.
Através de Chronik, a pesquisa de Straub e Huillet compôs um outro retrato do contexto de Bach: vários manuscritos atribuídos ao compositor alemão, tinham sido, de facto, recopiados pela segunda mulher, Anna Magdalena e restam ainda dúvidas acerca da autoria das peças. Estes documentos de época surgem facsimilados e são protagonistas de um filme que endereça, sobretudo, a memória, construindo um mundo de Bach próximo das formas de Bach. Se nos é dito que o compositor perdeu a visão e que, por isso, ditou os seus últimos trabalhos, esta descrição biográfica encontra um peso paralelo na presença da música sobre a imagem. Neste sempre balançar dos elementos, Danièle Huillet definiria esta ‘‘parença a Bach, como um total equilíbrio encarnado (...) sem divórcio entre a arte, a vida e o intelecto, entre a música profana e a sagrada.’’
Este drama descreve ideias velhas combatidas com ideias novas, protagonizado pela persistência de um homem que luta com as armas do seu tempo, contra as estruturas estabelecidas da arte e dos contextos em que a arte era produzida. ‘‘A paciência e a violência escondem-se na arte do próprio Bach’’, afirmou Jean-Marie Straub, aludindo à potência interventiva da música como veículo revolucionário, didáctico mas não tautológico. E é, precisamente, nesta análise da acção de um criador que estrutura uma meditação maior sobre o acto de criação e de significação que é construir um filme. Em Chronik, a imagem é construída para participar das virtudes da música: sente-se a sua depuração estética, e a força de cada imagem, composta com um rigor e uma beleza estudados, encontra o seu encadeamento, o seu tempo, o seu ritmo sem se sobrepor  ao som.
Em entrevista, Huillet afirmava um dia não suportar ‘‘quando a música é utilizada para que a imagem diga algo que não disse''. O edificar deste filme rima com a intenção de mostrar a construção musical como um processo dialéctico de fundação material, definidor de um compromisso de participação no mundo. A narrativa do filme progride temporalmente no interior  um corpo de trabalho de dois autores sintonizados, Bach e Magdalena, alinhados em permanente ponto de construção: se começámos por ver pautas anotadas à mão, em seguida vemos as pautas impressas que assinalam a passagem do trabalho individual à apresentação pública desta música. Chronik funda-se no movimento do particular tornado universal. No equilíbrio dialéctico entre a vida privada e pública do indivíduo em sociedade, a arte é encarada como a expressão posta em comum, com o compromisso de uma intervenção no espaço público.
Tal é o esforço protagonizado por Bach, constantemente em debate com a tarefa de criar, que o espectador espelha a sua experiência neste mesmo esforço de absorção, diante deste filme feito com tão novos eixos. Chronik é um filme de mãos, de braços, de olhos, de pés: respeitando os tempos da execução e da criação, o plano conduz-nos, por várias vezes, até junto da concentração absoluta de Bach, curvado sobre um teclado de cravo ou a tocar um cravo ou orgão embutido, e observamos de perto aquele processo de técnica e de minúcia que Straub designa com a expressão grega akribeia. O par almejaria esta mesma precisão na hora de seleccionar quem devia interpretar Bach (o cravista holandês Gustav Leonhardt) e Anna Magdalena (Christiane Lang, no seu único papel em cinema) e a edificação deste projecto usufrui das brechas da História. À distância das figuras misteriosas de um compositor do qual não ficou um único objecto pessoal e de uma mulher da qual não sobrou um retrato apenas, as possibilidades de escolha foram matéria-prima da liberdade de construir um filme alicerçado numa narrativa histórica, que assim prossegue segundo princípios de realismo, mas sobre uma sucessão romanceada de acontecimentos. Com uma história de amor por base, navegamos no interior de um legado artístico onde é, ainda hoje, indiscernível o que foi da autoria de Bach ou de Magdalena.
Uma correspondência que, adiantada por este filme, espelharia aquilo que viria a ser a cumplicidade do casal Straub-Huillet, cujo fluxo de pensamento e de criação se conjugou, com um radicalismo uníssono, sobre a estruturas basilares do cinema. Deixaram, em forma de filmes, os frutos públicos de uma rara e produtiva cumplicidade intelectual (que viria a ser belíssimamente retratada no documentário de Pedro Costa, Onde jaz o teu sorriso (de 2001) - título que evoca um graffiti que surgiria no início de Von Heute ao Morgen, de 1996).

VON HEUTE AUF MORGEN: Sobre as mulheres
Tal como haviam feito no Bachfilm, ao filmar De hoje para Amanhã (Von Heute ao Morgen, 1996), Straub e Huillet defendem incondicionalmente o som directo, buscando "captar ao mesmo tempo o canto e o corpo que canta". Cria-se assim, um bloco de trabalho encaminhado para a missão de limar todo o artifício, unindo o som à imagem (e impedindo o exercício manipulador de, posteriormente, cortar e colar arbitrariamente na montagem - truque da pós-produção em camadas a que Straub chamava de fazer ‘‘sopa sonora’’).
O projecto de desconstrução da ilusão é endereçado no início do próprio filme, que começa por nos mostrar a presença de uma orquestra num estúdio onde está montado um cenário, e o movimento panorâmico da câmara revela ainda as cadeiras vazias de uma plateia de teatro. Efectivamente, eram 70 os músicos permanentemente presentes atrás das câmaras e, tal como recordou António Rodrigues na sua análise a este filme gravado inteiramente em estúdio, tal ‘‘como num palco de teatro, o espaço é uma caixa fechada por todos os lados menos um.’’ Esta ópera num só acto, da autoria de Arnold Schoenberg (e seria a terceira "incursão" dos cineastas na obra do autor vienense), dá-nos acesso a um quadro progressivo da crise que se instala entre um marido e uma mulher que regressam de uma festa e meditam sobre a conjugalidade. O resultado é ‘‘nem totalmente naturalista nem totalmente abstracto, nem totalmente quotidiano nem totalmente teatral, algo «entre les deux»’’. No genérico de Von Heute auf Morgen, é a primeira vez em que o nome de Danièle Huillet aparece antes do de Jean-Marie Straub, o que nos recorda de que o libretto alemão desta ópera é assinado por Max Blonda, o pseudónimo de Gertrud Schoenberg, a mulher de Arnold Schoenberg. E se o seu Crónica de Anna Magdalena Bach era “a história de uma mulher que amou o marido até à morte” este Von Heute auf Morgen, conduzido pela rédea puritana de Danièle, foi "uma ocasião de trabalhar sobre uma obra feita sob o ponto de vista da mulher".
Sobre uma estrutura musical complexa, assenta uma contemporânea comédia de costumes onde a aparente banalidade temática levanta questões funcionais de primeira ordem. Perante uma sociedade que se replica com o modelo de casal como unidade com funções sociais basilares, em causa permanece o indivíduo, o mínimo denominador filosófico, e as estruturas da auto-determinação, do princípio do direito à felicidade, etc. A problematização levanta sucessivos conflitos morais que as cenas prolongam de um dia para o outro. Mas, de um dia para o outro, tudo muda para um novo regresso do casal à homeostasis.
O impasse calculista desta mulher que são duas - dividida entre a sedução de parecer feminina perante o marido e a responsabilidade de ser mãe - é interrompida pela inocente pergunta da criança ‘‘Mamã, o que são os homens modernos?’’. Com esta frase dita e não entoada, interrompe-se a cantata e o ritmo altera-se subitamente. Concentrados na música de Schöenberg, situamo-nos num além-tempo, na fenda entre o passado e o futuro. Por onde começamos a libertar-nos do peso da tradição? 

Einleitung zu Arnold Schoenbergs Begleitmusik zu einer Lichtspielscene:
Na sua curta-metragem Einleitung zu Arnold Schoenbergs Begleitmusik zu einer Lichtspielscene (Introdução a ‘‘Música de acompanhamento para uma cena de um filme’’ de Arnold Schoenberg, 1972), Jean-Marie Straub fita-nos enquanto explica o grau de detalhe com que Schoenberg deixa estritamente expressas indicações para as suas óperas. O seu objectivo, diz-nos, era ‘‘conter o caos’’ que diagnosticava ao seu tempo, mas em Música de acompañamiento por una escena del filme (escrita na Alemanha entre 1929 e 1930), o judeu Schöenberg deixa apenas quatro palavras: ‘‘Perigo ameaçador, Medo, Catástrofe’’. O seu pessimismo, resultado das perseguições anti-semíticas de que foi alvo até ao exílio para os EUA que se seguiria, convocam a perplexidade que exprime aos seus pares: “Porque é que um ariano é julgado por Goethe, Schopenhauer e por aí em diante? Porque é que as pessoas não dizem que os judeus são como Mahler, Altenberg, Schonberg e tantos outros?’’ A luta de Schöenberg é solitária e tem a clareza de um homem que precisaria de ser provado pela justiça do futuro. É sua a voz da razão com que combate os seus mais proeminentes contemporâneos, toldados pelo espírito nefasto do lugar e do tempo. Moses und Aron (Straub-Huillet, 1973) seria a adaptação homónima da ópera de Schoenberg, uma resposta dramática em três actos aos movimentos anti-semíticos e uma alusão à sua própria fuga da Aústria para a Alemanha, e depois para os EUA (apesar de se ter convertido ao Protestantismo em 1898). O génio austríaco, criador do dodecafonismo, um dos mais influentes estilos de composição erudita do século XX, trabalharia até ao fim, organizando pela arte um mundo em catástrofe. Nesta adaptação ao cinema, Moisés protagoniza um monólogo baseado nas notas de Schoenberg, momento sem música no fim do terceiro acto que resgata escritos de  Schoenberg,  à imagem do que Straub fizera no ano anterior em Música de acompañamiento por una escena del filme.

Esta concretização encontra-se com o materialismo convergente de Straub-Huillet, brotado de uma fenda radical que é desferida na evolução do cinema, e que propõe uma incansável reflexão sobre os mais definidores alicerces da estrutura e da técnica. De filme para filme, os cineastas repensam o osso da linguagem cinematográfica, destilando até à pureza os elementos que se adicionam para compôr um filme. ‘‘E o que é um filme?’’ perguntou um dia Straub. Interpelados pelo dever de permanentemente participar nesta pergunta em suspenso, a cada novo filme acedemos ao brechtiano convite de construir, individualmente, o nosso lugar enquanto espectadores. Um lugar analítico que, a requerer um postura crítica, deve desconfiar do cinema - e de permanentemente perguntar-lhe (poderia dizer João César Monteiro, o primeiro crítico de cinema a defender Straub em páginas portuguesas e cineasta tão melómano quanto o casal Straub-Huillet) acerca dos porquês de ser assim e não assado.

SABRINA D. MARQUES



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