sábado, 11 de janeiro de 2014

2013 / RICHARD SARAFIAN : Como é que os filmes acabam ?

Richard C. Sarafian: como é que os filmes acabam?
por Sabrina D. Marques / Setembro 25, 2013 @ À PALA DE WALSH


O nome de Richard C. Sarafian (1930-2013) não evoca imediatamente amplo reconhecimento. Foi, no entanto, o autor dessa obra nuclear do cinema do século XX que é Vanishing Point (Corrida Contra o Destino, 1971) e, no mesmo ano da fortuna, de Man in the Wilderness (Um Homem na Solidão, 1971). A grandeza excepcional de um ou outro bastaria para o saudar à partida, mas é por Man in the Wilderness, filme imperdoavelmente esquecido, que aqui lhe alongamos o adeus sentido.






dos trabalhos do mundo corrompida
que servidões carrega a minha vida

Herberto Helder in Servidões

1. ACONTECEU NA VIDA REAL Há uns anos, recebi uma SMS do meu amigo Mário, acabado de sair da Cinemateca. Dizia: “vê o ‘Man in the Wilderness’, o Tree of Life no Oeste”.  Não me enganou. Fiz o que me cabia e, daí em diante, partilhei o título com o mesmo íntimo sentido de dever. Era 2011, ano do cinema de Terrence Malick e da sua pouco consensual abordagem – essencial, para mim – de religação à experiência cinematográfica. Foi precisa coragem e os palpites religiosos inscreveram-se sem recuos no seio do relativismo contemporâneo. Man in the Wilderness (Um Homem na Solidão, 1971) segue este caminho caleidoscópico de espanto e de estudo, em geral, da beleza de tudo o que existe contra o nada. Ainda exercem fascínio sobre mim, para lá de toda a sua diferença, cada qual guardado como uma promessa cumprida das qualidades luminosas do cinema. Man in the Wilderness abre com uma metáfora certeira: a paisagem montanhosa é atravessada por um mastro de velas recolhidas a parecer uma cruz em sobrevoo. Caricata visão, o barco vai de carroça. Vinte e duas mulas arrastam-no. Estamos em 1829, dizem-nos, e a história que se segue aconteceu na vida real. A expedição do Captain Henry ruma ao Mississippi para vender mercadorias preciosas. A travessia do noroeste americano é o plot do western: o encontro com os índios é sempre hora de disputar as diferenças entre os homens, entre as civilizações, entre as religiões.

2. AS IMAGENS EM QUE SE ACREDITA “Quem fez o Mundo?”, questão cuspida pela voz do professor, exaltação de uma régua por chicote na sua palma da mão, a exigir ao aluno resposta pronta. “Deus. Deus fez o mundo. Deus. (a régua chicoteia a mesa) Deus. (a régua chicoteia a mesa) Repete. Deus. Repete. Deus”. Da mudez dessa criança de ouvidos cheios de deus nasceria a descrença feita homem. A dureza amarga do capitão Zachary (Richard Harris) é o centro em mutação desta história. São os índios que lhe respondem com a sua narrativa do Mundo: para a posteridade, pintam na pele curtida a inesperada imagem do barco sobre rodas que atravessa a paisagem. Olham em redor para guardar o que vêem: como as árvores, desabrocham para fora de si, crescem em estatura e em vigor, dependem da água e do sol de pés pregados à terra e é assim que procuram o divino – mais fora do que dentro.

3. UNIVERSAL RESISTÊNCIA Este é um filme sobre o Homem que se faz. Foi ferido e deixado para trás. “Ele não é humano”, ouve-se dos que não o salvam, porque o corpo de Zachary resiste mais do que o previsto. Um corpo crístico que jaz sem morte e com todas as chagas? Prova de uma santidade possível? Talvez. Mas longe do culto cristão do martírio, este corpo não se transcende, projectado além. Este corpo é presente, a possibilidade da sua cura está na terra e o seu projecto concentra-se na luta prática pela sobrevivência, o dia a dia. O elogio à resistência do corpo, rijeza do oeste que enobrece o cowboy, aqui enobrece o índio também. Homens e mulheres, tal e qual. Zachary a ser o primeiro dos homens. Ele é qualquer homem, para lá de etnia, porque em primeiro lugar, ele é um corpo que sobrevive. O tronco arrasta-se. As extremidades do seu corpo procuram as ténues mobilidades. Alcance para as pontas dos dedos. Rectidão para o torso curvado. Instrumentos para a necessidade. Combate os ursos e os lobos. Disputa com as feras a carne da caça, captura o lince para se aquecer nas suas peles. Procura as bagas, os animais, o alívio das ervas boas, a companhia amiga de um coelho branco. Não basta nascer – ao corpo humano cabe o trabalho de inserção na natureza. Próximo das fundações da vida, é o elogio do corpo que resiste, que suporta as estações e sobrevive às fraquezas do seu estado limite. A ferida do corpo foi menos grave do que a morte, é disto que se trata: disto não morrerá ainda. E o trabalho da resistência é esse: superar as pequenas doenças contra a doença letal. Resistir, encontrar sempre as possibilidades da cura, apesar de o corpo afinal nunca se curar de si. Resistir, sentir a vida apesar da morte. Resistir, querer a vida no corpo até às extremidades. Resistir no projecto de encontrar uma essência - renascer.

4. A NATUREZA TRANSITÓRIA DE UM HOMEM Os desertores deixaram-lhe uma Bíblia para sua salvação. Assim será, com estas páginas conseguirá atear um fogo sobre pedras, como no princípio. A alegria original do calor de uma chama a crescer. No protagonismo dos elementos, a água chega-lhe como primeira cura. Água onde a luz se espelha, espectro oscilante das cores, som imparável de um rio que corre, vida. A natureza está lá, quadro de riquezas em transformação contínua. O divino acontece em matéria, sente-se na certeza das pequenas coisas. Sem livros, sem professores. Sabe-o no rosto o velho índio voltado para os céus, a receber a água que chove. Afinal, a humanidade só depende da natureza. A preservação individual é possível, mesmo quando a sociedade se traiu. 

5. ÁRVORE DA VIDA Uma mulher índia agarra-se aos troncos porque o bebé quer sair. Rasga o cordão umbilical com os dentes e segura o filho contra o peito. Zachary observa tudo. No olhar azul de um homem que se comove é a  humanidade que se vê ao espelho. Revê-se no homem que se alegra porque lhe nasceu um filho. Chora a distância do ontem e tudo o que perdeu na vida que importava. Chora o milagre da sua própria mulher grávida e o próprio filho que não viu nascer e não criou. Alicerces de toda a beleza e de toda a vida entre a mulher e o homem que se olham. A existência encontra a razão no mundo e não na palavra. A experiência produz verdade – seja que verdade for.

6. TERRA-MÃE Este estado de guerra é masculino e está tão longe de ser natural. É a destruição que se opõe ao princípio da criação – regra natural que, em redor, a tudo norteia. Estas mulheres estão mais perto da génese. Não guerreiam, não empunham lanças ou as armas de fogo, não roubam corpos para escravidão. Pelo contrário – índias ou brancas, estas são as mulheres que cuidam, que conservam, que geram. Há no seu rosto paz e paciência, o ritmo da natureza. As gerações migram para diante, sempre, como as águas do rio. A natureza não pára mas o seu ritmo demora. Man in the Wilderness é um elogio do tempo, condição vital da atenção. Zachary, o homem selvagem, vive com paciência a recuperação de um corpo que leva a sarar. Vive no tempo da vida. Bênção em fuga, que o corpo humano é um estado temporário. Na solidão desta espera, o homem selvagem encontra-se plenamente no caminho da humanidade. A sua sede de vingança contra os que o abandonaram desvanece-se enquanto a natureza acontece em si e perante os seus olhos. O ímpeto destrutivo esgotou-se com a regeneração e o seu caminho é incerto, mas segue em direcção à vida.

7. COMO É QUE OS FILMES ACABAM? Acontece quando se ama. Os filmes em si não nos chegam, eles não acabam nunca. Fabricamos esta vontade de mais, já se apagaram os créditos e nós ainda ali suspensos. Já terminou a sessão e ainda o espírito todo ali habitado pelo filme sem ecrã. Antes vazio, agora cheio.


E este é o Cinema que é o algo em vez do nada, matéria do nosso testemunho. (E aí compreendemos o fulgor do cinema de Warhol, epíteto da fome pela proximidade da vida em longuíssimos filmes que idealmente nunca acabariam…) Filmes como Man in the Wilderness acontecem na fome do espírito. E haveríamos de o querer habitar até o corpo sentado se moer de si. É um desejo corrupto: este filme é o exemplo acabado da concisão. Cumpre-se numa simplicidade de onde, pela imagem certeira, quase sempre o texto se ausenta. Som diegético, música pontual. Acção muita, contemplação muita, flashbacks... O esquema formal funde-se à narrativa. Acontece com a depuração de uma parábola. Ainda assim, o mistério – a aura de um filme que espera sempre ser revisto, ser decifrado como um livro denso. Defronte destes filmes, longos em substância, únicos em arte, a memória busca auxílio e evoca ecos nas imensidões prévias. Imediatamente, o espírito de John Ford interpretado com exacta nobreza – Sarafian nunca escondeu esta influência.

8. MEDITAÇÕES SOBRE O FIM Richard C. Sarafian morreu ainda agora, aos 83 anos. E eu à cabeceira, acabo o recente Servidões do Herberto, que aos 83 anos ali medita com cinzelado travo de fim o serviço da sua poesia. Sempre com a palavra que só o seu génio sabe. Que servidões são estas de que fala? Servidões de ser, as inclinações irreparáveis da essência com que se fazem poetas, realizadores, artistas e que tinham mesmo de os fazer assim e não de outra forma qualquer. Servidões dedicadas até ao fim de um talento inato, que lhes coube por ministério e que há que cumprir enquanto lhes durem o corpo, as mãos, os olhos, o coração, a cabeça.

Sarafian foi diversas coisas mas aqui aconteceu em pleno. Pouco se escreveu ainda sobre este tão importante realizador e jamais vi quem reconhecesse Man in the Wilderness como a sua obra suprema. Mas as obras-primas serão obras-primas. Resta que continuemos a falar sobre elas, na modéstia das nossas vozes.

2013 / Allan Dwan : IDOS ROSTOS MUDOS


IDOS ROSTOS MUDOS
Sabrina Marques
 REVISTA LUMIÉRE | ALLAN DWAN DOSSIER 2013



“Era uma vez um tempo, há não muito tempo atrás, em que os rapazes sonhavam com grandes heróis que ousavam e disputavam, que lutavam e conquistavam, que levitavam e sobrevoavam os ares... os seus sonhos realizaram-se na forma de Douglas Banks.” Jeanine Basinger

A Máscara de Ferro carrega ainda hoje a força de um adeus sentido : é Douglas Fairbanks, a grande estrela do mudo, quem através dele se despede. Herói de todos os heróis, também ele um axioma, em toda a hipnotizante vitalidade preencheu de aventura os dias dourados do mudo. Estava-se em 1929, ano do big crash, mas também o primeiro ano da história de Hollywood em que a produção de filmes sonoros predominou sobre a de filmes mudos. Um ano em que um filme como A Máscara de Ferro só pode, portanto, surgir como uma assumida construção da nostalgia. Pela primeira vez se faz Fairbanks ouvir, estendendo um monólogo declamado em substituição de um prólogo que habitualmente seria descrito por intertítulos. Pela primeira vez, um herói por si protagonizado morre no fim, juntando-se ao seu trio de companheiros numa maior aventura além. E pela primeira vez, em lugar de um THE END, se desenha um THE BEGINNING, no plano final de A Máscara de Ferro.
Poucos assim foram, como Fairbanks, figura à qual a mise-en-scène se subordina. Dwan sabe-o, sabe que esse que foi Zorro, foi Robin dos Bosques, foi Ladrão de Bagdade, foi Pirata, e que na sua juventude foi um moderno D’Artagnan (em A Modern Musketeer, 1917), se expande numa presença soberana, que potencia a expressão do seu corpo até ao fim das suas extremidades, e que não saberia já adicionar-lhe a linguagem da voz, matéria para um outro treino.
O mudo foi corolário do modelo pantomineiro tanto quanto caminho para o seu esgotamento. A expressão acentuada de corpos e rostos procura conseguir a mais imediata leitura, e o rosto transforma-se no mapa de constantes eventos. O rosto do herói, em mutação sob o poder do close-up, é o mais iniciático, mais empático elo com o público, e é a chave do actor para ser também star. A emergência do starsystem é a época fértil dos halos e das deificações. A maravilhosa invenção recente é entretenimento, mas suficientemente sério para não faltar à arte; é negócio, mas suficientemente afectivo para não deixar de se lembrar que é do surpreendente que nasce a lenda. Com arte ou sem ela, os anos dourados são sobre o triunfo do espectáculo. O traço firme de Dwan sempre enfatiza o storytelling, eternizando odisseias maiores do que a vida consumadas por heróis perfeitos, hipnotizando o imaginário colectivo com contos de aventura e de romance só assim descritos na sala de cinema (e que encontram o seu paralelo de hoje num modelo francamente distinto). Entre as longas décadas de um cinema alicerçado em construções arquetípicas, os filmes de heróis de Dwan são a mais culminante redundância do seu estilo. A adaptação literária de populares romances pitorescos, a encenação em conformidade com uma outra época, os clichés que se replicavam em convenções narrativas (“boy meets girl”, “happy ending”...), a estilização cómica das personagens e os gesticulados exageros do género slapstick reúnem-se para engendrar barroquíssimas comédias, complexificadas por elementos simbólicos (como o crachá da rainha em Os Três Mosqueteiros ou o medalhão dividido em dois em A Máscara de Ferro) que aguçam o decorrer da acção.
Mas, se se percebe a olho nu que a adequação de um Douglas Fairbanks ao papel de herói está no imediatismo do seu porte atlético, o que afasta Dwan, ao serviço do star-system, do ludíbrio, da mera resposta aos impulsos adolescentes de todo um público movido pela fome de idolatria? É que, ao perceber a natureza das histórias, Dwan liberta-as. Histórias já conhecidas são matéria-prima moldável que cria novas estruturas, estruturas precisas e inaugurais que, à velocidade voraz da inovação no cinema, desenham novas formas para as figuras de ontem - e pelo novo medium se perpetuam. Como nesta Máscara de Ferro, em que, pela morte de D’Artagnan, é Fairbanks quem se despede da sua arte e de uma era que se extingue. Propositadíssimo paralelo, uma vez que na última instância da trilogia dos Mosqueteiros a opressão do uso da máscara implica a dissolução da identidade e do poder de Luís XIV (o auto-proclamado Rei-Sol por direito divino) quando este é raptado e substituído no trono pelo irmão gémeo. Do mesmo modo, a ênfase no rosto aliviar-se-ia com a oportunidade que o som concedeu à expressão vocal. Aparte do discurso inaugural, A Máscara de Ferro é um filme mudo mas, em 1952, surgiria uma versão renovada que, a par da montagem distinta, substituía os entretítulos pela narração de Douglas Fairbanks Jr. E, no final, é pela voz deste que se ouve o que é menos um epílogo e mais um epitáfio: “E assim se foi um bravo e glorioso homem, com honra. Basta pensares e voltaremos a viver. Viveremos para sempre, porque connosco, agora como sempre, é um por todos e todos por um.”
O romance de Alexandre Dumas seria adaptado por Dwan pelo menos quatro vezes : Richelieu (1914), A Modern Musketeer (1917), The Iron Mask (1929) e The Three Musketeers (1939). E se, entre estes filmes, o primeiro hoje se encontra perdido, o último, já sonoro e sem Fairbanks, seria um desastroso exercício de excesso, exemplo da instantânea sobredosagem de som e de música com que se recebeu os talkies.
A figura de Fairbanks é o emblema dessas primeiras décadas dos filmes de aventura, género intimamente corpóreo que exalta as façanhas do herói sempre homem. A supremacia do ideal viril, que se supera em destreza e valentia e que corajosamente enfrenta as mais altas batalhas e aventuras, é o maior fetichismo da época: nenhum outro género então mostraria assim os corpos. Neste compartimentado género fantasioso, fixado por traços sobremasculinizados (que, para lá da época que o datou, talvez só aos macmahonistas agradariam), os mesmos clichés repetidamente surgem: é o herói que triunfa, é o vilão que tem o que merece e são as mulheres que estão num plano secundarizado, em que o seu amor é tantas vezes a recompensa pelo esforço da demanda heróica. Estereótipos replicam estereótipos e, se há uma indubitável atmosfera conservadora que subjaz à movimentação repetitiva do género, afirmamos Dwan como um realizador conservador? De todo. Estamos perante um cinema de colisões, capaz de absorver todo o tipo de particularizações em que filmes como A Máscara de Ferro ou Os Três Mosqueteiros se possam encaixar. Quase como se por excepção. A sua arte - que é o que há a distinguir para a justa apreciação do seu legado autoral pelo hoje e pelo amanhã - revela-se com maior distinção noutros filmes. Filmes que enaltecem a força feminina, em histórias lideradas por mulheres ou com personagens femininas memoráveis por uma astúcia ímpar, como em Josette (1939), mas principalmente, nos precursores Woman They Almost Lynched (1953) ou Slightly Scarlet (1956). Com o massivo corpo de um trabalho pioneiro (que quase chega aos 400 títulos), com Dwan tanto se pergunta como se responde ao que deve ser o cinema.

terça-feira, 16 de julho de 2013

2013 / LUMIÉRE / Acontecimentos



L'Amour fou (Jacques Rivette, 1968)

É bem explícita da política deste Governo relativamente à cultura:
não se pode descer mais. 
José Neto, cidadão português

É impossível não enunciar hora e lugar ao começar um balanço destes, e de vistas postas em Lisboa, o ano marcou-se por falta e regressão. A mediocridade do governo português é mediática e no pequeno ecrã que a todos concentra a atenção e o olho crítico, é a narrativa da crise que se impõe, escorrida em surreais episódios diários que se sequenciam entre implausibilidades, desordem e geral morbidez. Só que é a realidade das realidades. Concretiza-se em instituições sabotadas por orçamentos que se amputaram, leis do Cinema suspensas e depois adulteradas, bolsas de investigação reduzidas e demais crimes contra o desenvolvimento do país. Enquanto isto, recessão, as salas perdem espectadores ano após ano. De facto, se os filmes de acção e aventura funcionam como experiências que se vendem a quem escasseia acção e aventura entre os seus dias, este país de hoje parece dispensar a fome de ficção. A acção está viva, é a realidade das ruas e, num clima que a todos ferve ao limite, estende-se a narrativa da realidade como se de um cinema contínuo se tratasse. Em qualquer esquina, vozes e palavras, protestos e manifestações se levantam. É tal o nível de absurdo na governação por um lado e tal o nível de consequente indignação por outro, que nestes tempos impossíveis de serem vividos que vivemos tudo pode acontecer.

Todas as estruturas relacionadas com a educação, arte e cultura afiguram-se hoje como holográficas: são espectros sempre em vias de desaparecer. Fazem tremer a paisagem urbana: agora um cinema, em seguida a sua falta (só em 2013, Lisboa viu fecharam-se o Londres e o King). Não garantem sequer acessos mínimos aos meios de produção - depois de um ano sem quaisquer subsídios, só em 2013 se retomaram - mais escassos - os apoios públicos. Em suma, é uma questão ideológica: o mesmo país onde vivem Manoel de Oliveira, Pedro Costa, Miguel Gomes, Manuel Mozos, parece exterminar carreiras e querer erradicar de vez essa rara espécie em vias de extinção chamada de cineasta profissional.


DO LADO DA RESISTÊNCIA

Segundo dados do ICA (Instituto do Cinema e Audiovisual), o filme mais visto em 2013 em Portugal foi A Gaiola Dourada, comédia saloia em estilo televisivo e, segundo o mesmo relatório, o filme mais premiado além-fronteiras foi E agora? Lembra-me, o prodigioso filme-testamento de Joaquim Pinto que ainda não estreou comercialmente nas salas. Se, perante a falta, redobra o valor do que se passa, Joaquim Pinto é um nome central do lado da resistência - à qual se adiciona um outro Joaquim, Joaquim Sapinho: com Haden Guest, participa numa essencial programação/seminário que se estende até 2014 – «Harvard na Gulbenkian»– e agrupa títulos portugueses e estrangeiros pouco vistos (Manuela Viegas, António Reis, Manuel Mozos, Ben Rivers, entre outros).

Em sala, pasmo, estreiam dois Ozus –Viagem a Tóquio e O Gosto do Saqué, acontecimento que alguma crítica impressa tão bem assinala ao incluir estas obras-primas dos anos 50/60 nos seus tops anuais de 2013, assim diagnosticando faltas gerais no circuito de exibição. No sempre excepcional trabalho da Cinemateca, é difícil destacar entre tanto valor, mas talvez tenha sido a retrospectiva integral de Fritz Lang o que mais me marcou. 


ESCAVAÇÕES PRIVADAS

A arqueologia doméstica dos meus primeiros meses conduziu-me até dois autores-monumento, a propósito de dois dossiers colectivos em torno de Allan Dwan (para a Revista Lumière) e de Raoul Walsh (para o site À Pala de Walsh). Perante tão densos legados, um infinito de títulos onde sempre voltar. E foi pelo mar, horizonte de ninguém que convida à fuga e ao esquecimento, que me escondi em Enchanted Island, em Sea Devils, em Band of Angels, em Battlecry, em Mamie Stover.

Foi tempo de revisitar Rivette, e de divagar pela sua Paris : Paris Pertence-nos, A Ponte do Norte e o Amor Louco são lugares de horas embriagadas, desenhadas pelos loucos que queríamos ser. Em A Religiosa, outras trangressões em que se descose um corpo contido, numa primordial raiva por mais vida, por posse eterna de juventude.

Eis que em horas de Verão, Jean-Claude Brisseau me entra seriamente olhos adentro como um dos mais importantes cineastas da contemporaneidade. Não só pelo seu recente A Rapariga de Parte Nenhuma, mas por obras-primas como Coisas Secretas e À Aventura, fetichismos ou feiticismos que hipnotizam sem regresso. Num filme diferente, Deste Lado da Ressurreição, de Joaquim Sapinho, uma força semelhante do corpo-limite lança-se para lugar incauto, além –e sente-se o rasgo de um mistério que se testemunhou e se guarda em silêncio–. Alain Resnais demonstra como ainda não vimos nada e desmantela o dispositivo-cinema até ao tutano à procura de isolar os seus elementos –apurar, revelar, relacionar a ficção com a realidade e as personagens com os actores, integrar o cinema na vida–. Ao fechar do ano, é pela voz radical de Ernesto de Sousa que me inspiraram os gritos que abanaram estruturas em definitivo, e descubro em Dom Roberto o secreto filme inaugural do novo cinema português. Nesta altura, a Cinemateca apresenta o seu Almada Um Nome de Guerra, uma tão pouco exibida obra aberta que ainda hoje nos espanta pela sua inventividade multiforme. A ser indispensavelmente evocados, alguns dos gigantes que o ano me trouxe : Napoléon de Abel Gance, I was born...but de Ozu, Liliom de Fritz Lang e La Ronde de Max Ophuls, filmes para todos e para sempre, em qualquer lugar ou tempo.



Sabrina Marques é investigadora de cinema, artista visual e colabora com diversas publicações de cinema (À Pala de Walsh, Cinédrio, La Furia Umana, etc).

Paris nous appartient (Jacques Rivette, 1961)

terça-feira, 9 de julho de 2013

2013 / Hélio Oiticica - Arte como ritual

Hélio Oiticica - Arte como ritual 
Sabrina D. Marques | Dezembro 2013 

A SIMPLICIDADE ENGANADORA DO PARANGOLÉ
De onde surgem os parangolés, o ‘‘exercício experimental de liberdade’’ de Hélio Oitica, segundo palavras de Mário Pedrosa ?  
Estamos no Brasil em 1964, acaba de ser instaurada a ditadura militar que só acabaria em 1985. Alinhado com o movimento tropicalista, o mais revolucionário movimento de regeneração da esfera artística brasileira da década de 60, Hélio Oiticica mantém a postura de artista militante, crítico da ditadura política em vigor no país. O jovem movimento exprime-se com maior expressão pela música, onde as letras evocam a construção linguística do concretismo. Como uma força contracultural, o tropicalismo inventa uma forma de neo-concretismo e, por via da paródia e do deboche, une a cultura erudita e a influência das novas vanguardas artísticas a um ímpeto de resgate das raízes da arte popular brasileira.
A partir de meados dos anos 50, os lugares da tradição são pontos-de-partida para abordagens artísticas de carácter colectivo que, pela denúncia e pela agitação, procuram participar na transformação da sociedade. É neste lastro da dissidência que Hélio Oiticica constrói a sua obra, aí firmando uma constante oposição política às tendências massificantes que o capitalismo importa para os panoramas cultural e artístico. E será a sua marginalidade a aproximá-lo das favelas em 1965, de onde lhe chegará  a inspiração para aquela que viria a ser a mais fracturante e emblemática das suas obras – os Parangolés – onde está presente a qualidade lúdica da arte popular que os tropicalistas não perderam. A simplicidade aparente dos Parangolés tão mais depressa se dissipa quanto sobre eles se reflectir – até ao fim dos seus escritos, o próprio Oiticica nunca deixou de se dedicar à tarefa de deslindar os propósitos da sua misteriosa criação.

1. PARANGOLÉS AO RITMO DO SAMBA
“E os que foram vistos a dançar foram tomados por loucos pelos que não ouviam a música.”
FRIEDRICH NIETZSCHE

1.1. DESINTELECTUALIZAÇÃO PELA DANÇA
O interesse de Helio Oiticica pela dança surge, segundo o próprio, como "uma necessidade vital de desintelectualização, de desinibição intelectual, da necessidade de uma livre expressão". É entre os ritmos do samba e as cores velozes, que o pensamento se evade e a ''verdade'' pelo Parangolé se encontra. Experimentando com materiais vários - que variavam entre tecido, borracha, tinta, papel, vidro, plástico, corda, palha - Oiticica cria os Parangolés, capas que se revelam através do movimento. Só assim, dependentes da literalidade da vivência, mostram plenamente as suas mensagens, formas, sons, grafismos e textos. Quando estão desabitados e desactivados, os Parangolés não passam de sacos informes de tecido mas, quando vivenciados são, ao limite, lugares de evasão transformadora. 

1.2. PARTICIPANTE-ESPECTADOR
Para o artista, a percepção de imagens em fuga, informação desconexa e veloz, transforma a dança num tempo sensorial por excelência. Consciente de que aquele que dança é ao mesmo tempo espectador de si próprio e do seu redor em mutação, Oiticica propõe-se a "dar ao público a chance de deixar de ser público espectador, de fora, para participante na actividade criadora".
Confundidos os papéis entre criador e espectador, Oiticica enfatiza o processo de criação, fazendo-o coincidir com o tempo de exposição da obra. Difícil de categorizar, esta obra é “antiarte” por excelência, definição do próprio Oiticica. De facto, princípios de performatividade, de realidade expandida, de encadeamento da obra com o espaço público, testemunham a influência que movimentos como o Grupo Fluxus ou Marcel Broodthaers, seus contemporâneos, têm sobre a sua obra.

1.3. UMA REALIDADE EM QUESTÃO?
Com o Parangolé, Oiticica convida à experiência de se vestir de cor como uma libertação que, longe da postura estática de uma atitude meramente contemplativa, produz uma ‘‘maravilhosa sensação de expansão”. Quando a interactividade da obra é tal que é necessário que o participante a vista para que ela efectivamente exista, em que moldes fazer nascer o espaço para que esta situação aconteça?
De facto, imaginar o dinamismo rasgante e colorido destas peças numa performance de samba dentro da galeria é quase tão improvável hoje como foi então. De tal forma que, em Janeiro de 1965, Hélio Oiticica seria expulso de uma mostra de arte no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, por levar consigo habitantes da Mangueira (favela no Rio de Janeiro) vestidos com Parangolés. Aí se pode comprovar como a crítica que fazia tinha fundamento – a elitização da arte era uma realidade no Brasil da época. A questão lança-nos para os dias de hoje, em que pouco parece ter mudado – os circuitos elitistas da produção e exibição artísticas não estão ainda por derrubar?
Com o desaparecimento do conceito de ‘‘exposição’’, desajustado ao falar de Parangolés, surge o problema da criação de espaços livres para a participação criativa do espectador (como um co-autor), como o  objetivo de “dar ao indivíduo de hoje, a possibilidade de 'experimentar a criação', de descobrir pela participação, esta de diversas ordens, algo que para ele possua significado." Efectivamente, os Parangolés constituem uma das várias aproximações de Oiticica a uma nova concepção que procura integrar o ser humano na obra de arte, confundindo vida e arte. Com a morte do espectador chega o nascimento do participante.

2. CORPOS TOTAIS
2.1. ARTE MARGINAL, ARTE INCLUSIVA
“Parangolé é a antiarte por excelência; inclusivé, pretendo estender o sentido de ‘apropriação’ às coisas do mundo com que deparo nas ruas, terrenos baldios, campos, o mundo ambiente enfim (...)”
HÉLIO OITICICA
A propósito de uma colaboração artística, Hélio Oiticica acompanhará os colegas Amílcar de Castro e Jackson Ribeiro à Escola de Samba Estação Primeira, no morro da Mangueira. Da experiência fundadora de envolvimento com esta comunidade, nascerão os Parangolés, nome que evoca um termo utilizado para obter novidades, na expressão informal: “Qual é o parangolé?”. É na marginalidade dos morros, lugar onde a sobrevivência é uma luta do dia-a-dia, e onde não há espaço para contemplações, que Oiticica se deixa contaminar pelos mais basilares movimentos da vida, acabando por criar uma obra que precisa de ser integrada pelo corpo humano. Deste princípio de não-separação entre vida e arte, surge a tentativa de sublinhar as potencialidades do indivíduo enquanto ser criativo em reinvenção constante, livre, mais lúcido e activo enquanto agente de intervenção na sociedade.
Quando a intenção da arte assim se centra no corpo e comportamento humanos, é do mundo das coisas que se foge negando, por conseguinte, o objecto artístico como um produto de consumo do mercado capitalista. E, por isso, acessível a todos. Hélio Oiticica procura derrubar as limitações que identifica numa arte hierarquizada, elitista, onde as possibilidades da experiência são amputadas por um processo estanque de estímulo-reacção e a novidade é sabotada pela imposição de padrões estéticos. Assim, Hélio Oiticica lança-se para lá das convenções em direcção a novas formas de promover o retorno do espectador-participante a si mesmo. A qualidade mais distintiva desta obra é a de não se focar apenas na experiência – mas procurar produzir efeitos que se prolonguem para lá dela. 

2.2. O SUPRASSENSORIAL E A DANÇA
‘‘O Eu chega de um estado de alerta puro em relação ao estado de ser.”
ALDOUS HUXLEY in As Portas da Percepção
Oiticica desenvolve o conceito de ‘‘Suprassensorial’’ por volta de 1967, procurando expandir as possibilidades sensoriais no espectador-feito-participante até atingir uma ‘‘suprassensação’’, semelhante às proporcionadas pelas drogas alucinogénicas. Segundo Oiticica, expandir a percepção e a consciência, permitiria a “descoberta do seu centro criativo interior, da sua espontaneidade expressiva adormecida, condicionada ao quotidiano”. Conhecer esta suprassensorialidade proporcionaria ao indivíduo uma mais clara descoberta de si o que, por seguinte, influiria no seu comportamento. Um dos meios possíveis para atingir este estado de expansão seria, por exemplo, através do samba, com os seus muitos ritmos, cores e movimentos.

2.3. DANÇA E ANCESTRALIDADE
‘‘Deixando-se impregnar pelos movimentos do corpo, a consciência do corpo abre o espaço da consciência e do pensamento ao corpo e aos seus movimentos.”
JOSÉ GIL in Movimento Total, O Corpo e A Dança
Na contemporaneidade, os gestos humanos como meios de chegar a fins dissipam-se quando é pela dança que o corpo age. Porque se o gesto utilitário do corpo tem uma estrutura significante intrínseca, a dança é, pelo contrário, a procura de um corpo sem fim. O gesto dançado é misterioso, mudo, imperscrutável. Lembramos de Nietszche e dos devaneios ditirâmbicos de Diónisos, pulsares de juventude, de sexo e de êxtase que levam o corpo para perto de uma sabedoria sobre si e para mais longe da sua consciência de finitude. Como lembra Laurence Louppe em Poética da Dança Contemporânea, “Nietzche previu uma arte sem representação que estaria mais próxima de uma vontade ou de um desejo puro sem representação: um ‘querer sem fundo’, afirma n’O Nascimento da Tragédia”. Um corpo dionisíaco é um corpo perdido, um corpo num limbo entre os esgares do homem-animal e os primeiros vestígios de civilização. Tentar apontar uma origem para a dança seria evocar um lugar ancestral de construção da linguagem humana, onde se ensaiam os primeiros signos através dos gestos, num primeiro esboço do corpo-sujeito. À ancestralidade germinal da dança liga-se portanto uma imediata ideia de naturalidade, de uma metamorfose espontânea de um  corpo em improviso.  Transversal a todas as culturas, a expressão pela dança é a maior afirmação da vida.

2.4. DANÇA CONTEMPORÂNEA: O EU
“Na dança contemporânea existe apenas uma verdadeira dança: a de cada um (como reconhece Isadora Duncan em ‘The Art of the Dance’, ‘a mesma dança não pode pertencer a duas pessoas’).”
LAURENCE LOUPPE  in Poéticas da Dança Contemporânea

A dança contemporânea, que surge pelos fins do séc. XIX desenvolvendo-se ao longo do século XX, procurará regressar a esta força. À dança contemporânea corresponde uma revolução do corpo do bailarino, marcada pelo despojo, pela ênfase do essencial. Liberto das convenções narrativas das coreografias clássicas, o bailarino procura uma identidade onde as suas forças e o seu pensamento são os primeiros agentes responsáveis pela criação. Esta recusa dos figurativismos do passado está profundamente ancorada numa desintegração dos movimentos do corpo, que procuram destruir a figura humana - O corpo amputado de Adorno, está presente e, com ele, a vontade de romper com os limites do corpo e com as linguagens lineares. O bailarino quer ser corpo sem alfabeto : os gestos não se sucedem como frases aptas a ser lidas, mas acontecem em mistério, procuram a polissemia. Para o bailarino, um projecto de aprofundar o próprio corpo. Para Ida Rolf, a visualização das Ideias que fluem no corpo é um exercício criador do ser-corpo, indispensável à dança contemporânea – as ideia-em-devir no corpo despertam, num sentido mallarmiano, a consciência deste. Na dança contemporânea, o domínio físico das estruturas canónicas da dança não está de modo algum relacionado com as possibilidades do bailarino de atingir uma nova expressividade, pois, como aponta Laurence Louppe “é a plasticidade do espírito que torna possível um movimento.’’ Não é por isso de admirar que tantos que tantos dos alicerces da dança contemporânea cheguem de contributos de nomes que não eram nem coreógrafos nem bailarinos profissionais, como François Delsarte.
  
“A dança moderna é um ponto de vista”
SELMA JEANNE COHEN

2.5. DANÇA, SIGNIFICADOS INFINITOS
Recordamos a frase de José Gil – “vencer o peso, tal é o objectivo primeiro do bailarino” – onde se evoca a contínua transformação do corpo do que combate as leis da física que o dominam, que lhe dão resistência e força. Uma ideia bela, que nos situa perto da ancestralidade da dança, qualidade exclusivamente humana, e nos recorda do continuum do seu esforço que, em simultâneo, é processo e pesquisa ainda hoje. Ao falar da coreógrafa e bailarina contemporânea Trisha Brown, Laurence Louppe evoca exactamente a sua “incidência do peso do corpo”, de uma ‘‘nova poesia do peso ao qual todo o sistema gravítico (corpo e terra) se encontra associado”.
Merce Cunningham é um nome central na passagem da dança contemporânea para a abstracção e de um trabalho radical de rejeição das formas miméticas, das imagens, das sequências, dos símbolos e do expressionismo que dominava a dança moderna até aí, pondo a dança ao serviço da expressão das emoções. Contra um princípio de sublimação do mundo interior pela exterioridade do movimento, o gesto radical de Cunningham livra-se de todas as gramáticas. A introdução do acaso, a decomposição dos movimentos e uma rotura da coordenação coreográfica reúnem-se numa técnica que autonomiza os gestos e modifica a figura. Cunningham procura atingir o vazio, o lugar do movimento puro, para assim retornar a um grau zero da arte e da linguagem – existir sem referente, rejeitar a necessidade da descodificação por parte daquele que assiste.
Também em Pina Bausch, outro nome indispensável da dança contemporânea, não há leituras fechadas. Pode “ver-se algo e também o seu contrário”, disse a coreógrafa acerca daquilo que José Gil identificaria como uma ‘’lógica do paradoxo’’. Abrem-se os gestos mas o pensamento fica por abrir. Se a dança é uma linguagem de interpretações, as múltiplas possibilidades evocadas, por exemplo, perante  Tanztheater (1973), de Bausch (ANEXOS : IMAGEM Nº 8), testemunham a riqueza de uma obra onde os sentidos ambíguos do acontecimento coexistem com o próprio acontecimento.
Estar alheio à intelectualização é estar fora da codificação pela linguagem, é libertar-se de significar. Será esta experiência íntima atingida pela dança, de uma "lucidez expressiva da imanência", que leva Oiticica a imaginar o Parangolé onde, à semelhança da dança contemporânea, o improviso desempenha um papel estrutural.

2.6.  CONTEMPORANEIDADE = A URGÊNCIA DO CORPO LIBERTO

A evolução recente da sociedade humana é acompanhada por um estreitamento dos códigos da expressividade corporal – se a aculturação dos gestos humanos é a sua progressiva codificação, a escala global estipula uma base interpretativa cada vez mais reduzida. Se comunicar significa ‘’pôr em comum’’, viver na sociedade global da comunicação hoje significará preferir a produção de ‘códigos fortes’, aquilo que Umberto Eco explica como mensagens de leitura imediata, sem referencial. Na dinâmica social contemporânea, o corpo humano é, pelo imediatismo universal da sua imagem, o protagonista por excelência de uma circulação infinita de iconografia significante que, através de uma profusão de imagens (publicidade, televisão, etc), o transformam em pólo de convenções simbólicas. É Stuart Hall quem cunha o conceito de “pós-moderno global”, argumentando que “os fluxos culturais, entre as nações, e o consumismo global criam possibilidades de 'identidades partilhadas' – como consumidores para os mesmos bens, clientes para os mesmos serviços, públicos para as mesmas mensagens e imagens – entre pessoas que estão bastantes distantes umas das outras”. A mercantilização do corpo pela sociedade capitalista não é só a promoção de um discurso propagandístico através do corpo e do gesto - também se relaciona directamente com o usurpação do tempo através da promoção ininterrupta do consumo. Assim, estando o tempo do corpo humano tão dependente dos ritmos exteriormente impostos pela sociedade, perde a capacidade de aceder a estados não-programados – ou seja, toda a sua linguagem gestual está alheia a estados não-miméticos, que envolvam, por exemplo, o improviso, o absurdo, a ilógica, a animalidade ou a inconsciência.

“A lista de compras não tem fim. Porém, por mais longa que seja a lista, a opção de não ir às compras não figura nela”
ZYGMUNT BAUMAN

É pela busca dos estados primordiais que a dança contemporânea se desenvolve, procurando libertar o corpo de significar. Agamben afirma que “a vanguarda que perdeu o seu tempo, põe-se no rasto do primitivo e do arcaico”. Ou seja, o presente tem consciência do devir histórico e relaciona-se com outros tempos, procurando a ‘‘falta’’ – a falta de códigos, a falta de linguagem, a falta de objectos, a falta de cultura. Onde o eu é um lugar por encher.
Por outras palavras, modernizar o presente através da arte é um exercício desconstrutor, de desintelectualização - que Oiticica já evoca como fundamental para as estruturas fundadoras da sociedade a que Oiticica aspira. E, à semelhança da dança contemporânea, crê que, em primeiro lugar, o “bailarino dança no interior do seu corpo’’ (como descreve José Gil), ou seja, que a mudança acontece primeiramente no espírito.

2.7. A DESINTELECTUALIZAÇÃO
De facto, a desintelectualização prevista por Oiticica para todos aproxima-se intimamente do princípio humanista de John Locke da tabula rasa. Porque não existem ideias inatas, é através da experiência, um processo de recolha para conhecer, saber e agir, que o conhecimento nasce. Antes disto, a mente é, para todos, a mesma ‘folha em branco’ por começar.

2.8. ARTE E RITUAL
"Descobri algo: a Capa Parangolé revela a ambivalência e depois a multivalência entre o nu e o vestido: CAPA e CORPO são um, mas o adorno da cabeça elimina o conceito de nudez mesmo que a pessoa esteja nua, porque o adorno da cabeça revela a INDIVIDUALIDADE; a cabeça é UM e o corpo, UM ENTRE OUTROS; a descoberta do CORPO tribaliza ao mesmo tempo que permite reconhecimento; a cabeça não, ela é UM, no seu caso da COLETIVA isso se torna mais profundo e engravida."
HELIO OITICICA em carta a Lygia Clark

O parangolé pamplona você mesmo faz
O parangolé pamplona a gente mesmo faz
Com um retângulo de pano de uma cor só
E é só dançar
E é só deixar a cor tomar conta do ar
Verde
Rosa
Branco no branco no preto nu
Branco no branco no preto nu
O parangolé pamplona
Faça você mesmo
E quando o couro come
É só pegar carona
Laranja
Vermelho
Para o espaço estandarte
Para o êxtase asa-delta
Para o delírio, porta aberta
Pleno ar
Puro hélio
Mas o parangolé pamplona você mesmo faz
O parangolé pamplona você mesmo faz
O parangolé pamplona a gente mesmo faz
O parangolé pamplona você mesmo faz
Com um retângulo de pano de uma cor só
E é só dançar
E é só deixar a cor tomar conta do ar
Verde
Rosa
Branco no branco no preto nu
Branco no branco no preto nu
O parangolé pamplona
Faça você mesmo
E quando o couro come
É só pegar carona
Laranja
Vermelho
Para o espaço estandarte
Para o êxtase asa-delta
Para o delírio, porta aberta
Pleno ar
Puro hélio
Mas o parangolé pamplona você mesmo faz
O parangolé pamplona a gente mesmo faz
O parangolé pamplona você mesmo faz
O parangolé pamplona você mesmo faz
O parangolé pamplona você mesmo faz

ADRIANA CALCANHOTO

Parangolés, pássaros tropicais. Situados numa zona de estranheza, parecem desajustados de classificações como ‘arquitectura provisória’ ou ‘escultura em movimento’ por várias vezes evocadas para os enquadrar e que parecem impor-se como categorias forçadas sobre um projecto aberto que firma a rotura com as sistematizações. Se é difícil categorizar esta obra, foi talvez na liberdade da poesia que as suas mais bonitas legendas se encontraram. Sobre os Parangolés em estado de desabitação, escreveu o poeta Haroldo de Campos que lembravam “as asas murchas de um pássaro” e bastaria alguém vesti-las e abrir os braços para que se confundissem com uma “asa-delta para o êxtase”. De facto, é uma aura poética o que está na génese desta obra - experienciá-la é um movimento mítico, uma curva transformadora da experiência.  
Existindo como vestimentas com finalidades catárticas para o corpo que as veste, os Parangolés parecem reminescentes de vestes de culto associadas a um ritual cerimonial. Efectivamente, a pesquisa estética de Oiticica chegará ao conceito de ‘‘evento’’, necessariamente implicado numa ideia de ‘‘duração’’, elementos indispensáveis à existência do ritual. Se podemos sucintamente designar ‘‘ritual’’ como uma sessão performativa de gestos, palavras e objectos e que, com fins metamórficos, rompem o tempo e espaço previamente designados, a experiência evocada pelo Parangolé poderá ser assumida como ritualística. Um ritual informal e pagão, neste caso, onde, sem regras, pela imanência se revelam as formas míticas que vivem no mundo fenomenológico, e a que estes ímpetos físicos acedem.
A experiência proporcionada pelo Parangolé é, para Oiticica, um ‘objectevento’’, mas outras expressões surgirão para precisar este género de nova experiência transicional intimamente corpórea, que brota em oposição o ritmo do dia-a-dia : a “experiência mágica”, o “achado de algo” ou a “comunhão com o ambiente’’. Transformados, os olhos lavados pelas cores e estimulados pelos ritmos participarão de um projecto utópico de Oiticica de (re)construção do mundo através da arte. Inspirado pelo dia-a-dia nos morros e pelos sambas criados e vividos pelos seus habitantes, Oiticica faz corresponder Realidade e Autenticidade – aqui se sublinha a vocação ritualística dos Parangolés que, ao limite, podem ser experienciados indistintamente por todos, independentemente da classe social. Espontaneamente e sem códigos prévios, uma forma de vivência ritual intuitiva, corporal e emocional, próxima das religiões pagãs, onde não existe cisão entre corpo e espírito, aproxima o ser do mundo concreto. E a experiência nunca se esgota – os parangolés podem ser vividos quantas vezes se desejar. Tal como à dança não se esgotam os movimentos.

“Existem dois tipos de rituais. O primeiro estudado pelos etnologistas, que é familiar, é um acto inconsciente sem deliberação estética, resultado da influência étnica de muitas gerações que culmina num grupo com seu sistema fundamental. E o segundo tipo, ou seja, um novo tipo de ritual, que é a criação do indivíduo excepcional que transforma a sua experiência através de um idioma metafórico conhecido como arte’’
JAMAKE HIGHWATER in Dance - Rituals of Experience

3. PARANGOLÉS, EVENTOS DO CORPO
"É a fantasmática do corpo, aliás, que me interessa, e não o corpo em si."
LYGIA CLARK em carta a Hélio Oiticica
“O Corpo é fantasma. Esconde-se e depois aparece.”
GONÇALO M. TAVARES in Livro da Dança
Nos Parangolés, mensagens como “Incorporo a Revolta” e “Estou Possuído” surgem entre estas capas multi-texturadas sugerindo convites à acção-limite da experiência. Não sendo objectos limitados mas obras à espera de nascer, os Parangolés são um lugar em aberto a que a experiência artística em si se funde para que o curso usual dos acontecimentos se interrompa - assim criando, nas palavras de Oiticica, “objectos-evento”, “reuniões-evento” ou “amomentos”.  

3. 1. OS EMBRIÕES ARTIFICIAIS
Numa manifesta posição contra as formas fixas, seja qual for o modo hierárquico, individualista ou governamental em que se manifestem, os Parangolés fundam-se, à primeira vista, em preceitos anárquicos. Emblemas da liberdade total são idealizados para, potencialmente, actuarem como ‘embriões de renascimento’, células vazias prestes a ser ocupadas por qualquer corpo livre predisposto à regeneração. A estes ventres onde, em todas as suas potencialidades, o ser explode em direcção a um segundo nascimento preside um ideal utópico de emancipação humana. Ou seja, o projecto de Oiticica é mais comprometido com a sociedade do que à primeira vista se poderia adivinhar – e carrega uma intrínseca vocação universal.
Perante as indefinições políticas e sociais, projectos artísticos de ‘’embriões artificiais’’ surgem como ‘’bolhas’’ de possibilidades em anos particularmente fervilhantes de redefinição das vanguardas artísticas. (Se o panorama artístico deve ser sempre lugar de não-conformismo, entre vagas cíclicas se aprende que o fluxo da história não é linear e que o radicalismo é uma atitude necessária. )
À semelhança dos Parangolés, a obra Divisor criada pela artista brasileira Lygia Pope (também alinhada com o Tropicalismo) em 1968, depende da interacção com corpos humanos para existir. São necessárias 200 pessoas para preencher as fendas regulares de um gigantesco manto branco que lhes deixa somente as cabeças de fora. No lastro do trabalho de Oiticica, esta estrutura performativa não implica a presença da autora e estimula a que, no improviso da reunião dos elementos participantes, surja uma harmonia coreográfica.
Também o Suitaloon, concebido por Michael Webb (membro do colectivo britânico de arquitectura experimental Archigram) só adquire sentido quando habitado por um corpo ao qual se molda. Esta estrutura maleável e transportável, funciona como unidade habitacional essencial para um só indivíduo, numa abordagem radical que encara a casa como uma segunda pele.
Num exemplo igualmente radical, para Friedrick Kiesler uma casa era um corpo humano, um organismo vivo com a reactividade de uma criatura de carne e osso e, como tal, com órgãos, a que associava as diferentes funções dos espaços. Com a Endless House, propõe em 1959 uma casa que envolve organicamente o corpo, uma forma curvilínea, uma estrutura-ovo. O seu projecto não incluía um esqueleto mas antes uma pele estrutural que definia o espaço – casa como um corpo vivo. Existe uma perda de referentes fixos, com superfícies inclinadas e curvas, o chão e o tecto contínuos, fundindo-se com o mobiliário, por isso o próprio nome do projecto explicita esse carácter de objecto de limites indefiníveis, de linhas contínuas nas quais não é possível identificar princípio ou fim – onde começa corpo e acaba casa.
Em Je t’aime Je t’aime (longa-metragem de Alain Resnais, 1968), uma membrana orgânica surge como um estranho orgão em que um homem se encaixa para viajar no tempo. Todos estes são lugares em grande parte esculpidos pela imaginação. Quer-se com isto dizer que, tal como os parangolés, situam-se próximos da utopia – sítios sonhados à medida do corpo para que este se transforme profundamente e se cumpra nas suas mais altas potencialidades. Mudar a sociedade ao ritmo de um corpo de cada vez.

O PARANGOLÉ, VESTIR PARA ENCONTRAR NUDEZ

 “É contemporâneo aquele que recebe em pleno rosto o feixe de treva que provém do seu tempo.”
GIORGIO AGAMBEN in Nudez

Encontrar hoje alguma clareza para escutar vozes do passado, distinguindo com lucidez entre o rodopio espectacular do mundo, é não escapar à força dos ensinamentos de Oiticica “e procurar um modo de dar ao indivíduo a possibilidade de experimentar, de deixar de ser espectador para ser participador." Foi este deslocamento da experiência que nos trouxe o Parangolé, simples dispositivo engenhoso: vestir uma capa e dançar, ou dar início um profundo projecto de evasão do eu e logo mais claramente olhar para dentro – e ver que há por mudar em redor.
Uma emancipação que propõe o abandono do racional em direcção ao vivencial. Que enfatiza o estímulo plurisensório como uma postura activa de um movimento que onde experiência e criação se encontram. A arte foi liberta, a autoria declarou-se obsoleta. A experiência artística previu-se única e intransmissível. Habituados como estamos aos egos dos artistas, quanto não há para admirar nesta capacidade de um autor de abdicar da própria autoria? Precursor de tantas questões ainda actuais, Oiticica não pode deixar de ser nosso indispensável contemporâneo.


BIBLIOGRAFIA
- ARTIGOS CONSULTADOS

* AFTER ALL #28, 2011
* SCHOBER, Anna, “Helio Oiticica’s Parangolés: Body Events, Participation in the Anti-Doxa of the Avany-Garde and Struggling Free from it”
* SANTOS, Lionês Araújo dos, et al, ‘’A MERCANTILIZAÇÃO DO CORPO: MÍDIA E CAPITALISMO COMO PRINCIPAIS AGENTES DA PROMOÇÃO DO CONSUMO E DO MERCADO’’

- LIVROS CONSULTADOS
* AGAMBEN, Giorgio, Nudez, Relógio d’Água, 2009
* ECO, Umberto, O Signo, Editorial Presença, 2017
* LOUPPE, Laurence, Poética da Dança, 1ª ed. - Lisboa: Orfeu Negro, 2012.
* OITICICA, Hélio Oiticia & Clarck, Lygia. Cartas: 1964-74, Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ2
* O’REILLY, Sally, The Body in Contemporary Art, Thames & Hudson, 2009
* GIL, José, Movimento Total, O Corpo e a Dança, Relógio d’Água, 2001
* GIL, José, Metamorfoses do CorpoRelógio D''Água,1997 
* SILVA, Agostinho, Considerações e Outros Textos, Assírio & Alvim, 1989
* TAVARES, Gonçalo M., O Livro da Dança, Assírio e Alvim, 2001

- SITES CONSULTADOS
http://homepage.univie.ac.at/anna.schober/Schober.pdf
http://www.avidaquer.com.br/os-parangoles-de-helio-oiticica-deveriam-ser-de-todos-os-brasileiros/

- FILMES CONSULTADOS
* H.O., Ivan Cardoso, 1979

- IMAGENS PARA ANEXO :

* IMAGEM Nº 1 : Sambistas da Escola de Samba Vai Vai (SP) usam "Parangolés" originais de Helio Oiticica.
* IMAGEM Nº2 / IMAGEM Nº 3 : Stills do filme  H.O. de Ivan Cardoso, 1979
* IMAGEM Nº 4 : Figure and Space Delineation, Oskar Schlemmer, 1924
* IMAGEM Nº 5 : Egocentric Space Delineation, Oskar Schlemmer, 1924
* IMAGEM Nº 6: Figuras Geométricas, Nijinski
* IMAGEM Nº 7: Trisha Brown, Compass, 2006
* IMAGEM Nº 8 : Tanztheater, Pina Bausch
* IMAGEM Nº 9 : Divisor, Lygia Pope, 1968
* IMAGEM Nº 10: Suitaloon, Michael Webb (Archigram, 1964)
* IMAGEM Nº 11 : Endless House, Friedrick Kiesler, 1959
* IMAGEM Nº 12 : Je t’aime Je t’aime, Alain Resnais 1968