quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

2022 / ''Dead Ringers: a solidão de ter apenas um corpo''


Os gémeos respondem à solidão que é ter apenas um corpo. Jeremy Irons encarna as duas faces da mesma moeda: estes univitelinos idênticos, agregados como siameses, completam-se. Elidem fronteiras físicas e, na bondade e na maldade, na masculinidade e na feminilidade, na sanidade e na loucura, em Jekyll e em Hyde, constroem em dueto a sua condição (in)humana. Nas operações-performances do recente Crimes of the Future (2022), Cronenberg regressa ao tema central de Dead Ringers (1988): a beleza interior. Fosse o corpo transparente, e ver-se-iam orgãos tão espantosos que haveriam de ganhar concursos de beleza, a biologia seria premiada pelas suas mutações orgânicas e os instrumentos médicos remodelar-se-iam para servir a deformação individual. As batinas vermelho-sangue circundam a mesa de operações com a solenidade de uma missa. Os talentosos irmãos Mantle, que desde sempre estudaram a compleição física dos indivíduos, nunca encontraram a sua em individualidade. Só a união de Elliot e Beverly equilibra a balança, até à derradeira fenda provocada pela falta do outro, uma separação latejante como um corpo adicto esperneando dos seus sintomas de privação. Curado, salvo da excrescência pela cirurgia, Beverly removeu o seu teratoma Elliot. Arrancada pelas próprias mãos da soma confusa das carnes, a identidade do cirurgião veio ao de cima: enfim, é. Porque a existência é a história da sobrevivência do mais forte.

domingo, 19 de junho de 2022

2017 / O Sabor da Cereja: ao redor da Árvore Filosófica - Mehdi Jahan para Medeia Magazine (Trad. Sabrina d. Marques)

 



O sabor da Cereja: 

Ao redor da Árvore Filosófica

por MEHDI JAHAN

tradução de Sabrina D. Marques

para Medeia Magazine, Agosto 2017


Em 1997, O Sabor da Cereja trouxe a Palma de Ouro a Abbas Kiarostami e se o destaque em Cannes abria verdadeiramente o ocidente ao cinema iraniano, as críticas sobre este complexo filme divergiam. Talvez o mais enigmático e mais bem conseguido entre os títulos de Kiarostami, ainda hoje é uma mescla incomum de humor, meditação e mistério, que sobrevive à distância cultural. Resistindo a caracterizações, este filme permanece tão velado como o seu protagonista Badii, que vemos navegar pelas periferias de Teerão no interior do seu Range Rover. Interpela desconhecidos com quem partilha uma missão para a qual necessita de auxílio, mas as suas motivações permanecer-nos-ão incertas. Este filme demora-se como uma travessia entre as conversas de Badii com os três homens que ‘‘recruta’’ e com quem partilha reflexões. A natureza filosófica dos discursos adensa-se entre indagações acerca do suicídio, da vida e da morte - mas, para lá do seu significado literal, esta digressão parece-nos ser sobre a natureza do próprio cinema. Se é verdade que é Badii quem nos conduz, nunca chegamos à identificação plena com o protagonista porque nunca conheceremos as suas motivações - logo, nunca participamos inteiramente no seu conflito. Eis Kiarostami, respeitador dos mistérios da vida. E se esta desconstrução põe em causa as regras do storytelling a que Hollywood nos habituou, também garante ao espectador a necessária distância moral, não definindo um juízo sobre o suicídio enquanto questão. Não sendo, de facto, apresentados à história, situamo-nos sempre em ponto de revelação. Mesmo que a descoberta das condições nos pareça insuficiente, este roadmovie larga-nos entre os termos práticos do seu conflito e, em permanente diálogo entre o interior e exterior, acompanhamos as progressivas decisões que conduzem ao materializar do seu objectivo. Ao rejeitar as estruturas clássicas, o que Kiarostami faz é convidar os espectadores à participação activa na narrativa, em lugar de os instruir acerca do que sentir. Como afirmou: ‘‘Acredito num cinema que dá mais possibilidades e mais tempo a quem o vê - um cinema semi-artesanal, um cinema incompleto, que é completado pelo espírito criativo do espectador para que, subitamente, tenhamos cem filmes num só’’. A dado momento, Badii confronta um dos homens com a honestidade abrasiva que traduz o seu desamparo: ‘‘Podes perceber-me mas não consegues sentir a minha dor.’’ É neste ponto de ruptura que a linguagem mainstream se desmonta, expondo a impossibilidade última de qualquer tentativa de manipulação emocional da audiência. O que afinal Kiarostami aqui inscreve são as limitações gerais do cinema, que se esgota na superficialidade de uma empatia a que corresponde, necessariamente, uma distância. Trazemo-las connosco mas, de frente das personagens que vemos no ecrã, somos sempre outros.