quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

2022 / ''Dead Ringers: a solidão de ter apenas um corpo''


Os gémeos respondem à solidão que é ter apenas um corpo. Jeremy Irons encarna as duas faces da mesma moeda: estes univitelinos idênticos, agregados como siameses, completam-se. Elidem fronteiras físicas e, na bondade e na maldade, na masculinidade e na feminilidade, na sanidade e na loucura, em Jekyll e em Hyde, constroem em dueto a sua condição (in)humana. Nas operações-performances do recente Crimes of the Future (2022), Cronenberg regressa ao tema central de Dead Ringers (1988): a beleza interior. Fosse o corpo transparente, e ver-se-iam orgãos tão espantosos que haveriam de ganhar concursos de beleza, a biologia seria premiada pelas suas mutações orgânicas e os instrumentos médicos remodelar-se-iam para servir a deformação individual. As batinas vermelho-sangue circundam a mesa de operações com a solenidade de uma missa. Os talentosos irmãos Mantle, que desde sempre estudaram a compleição física dos indivíduos, nunca encontraram a sua em individualidade. Só a união de Elliot e Beverly equilibra a balança, até à derradeira fenda provocada pela falta do outro, uma separação latejante como um corpo adicto esperneando dos seus sintomas de privação. Curado, salvo da excrescência pela cirurgia, Beverly removeu o seu teratoma Elliot. Arrancada pelas próprias mãos da soma confusa das carnes, a identidade do cirurgião veio ao de cima: enfim, é. Porque a existência é a história da sobrevivência do mais forte.