sábado, 11 de fevereiro de 2023

2022 / RAQUEL FREIRE: Vermelhos Vivos

Vermelho é o punho fechado: Assumindo-se como cineasta, escritora, argumentista, produtora, mãe e cidadã, Raquel Freire dá voz, rosto e manifesto às suas causas, ao longo de um acérrimo percurso que interpela directamente das trincheiras. Com a coragem de inflamar o próprio púlpito e manter a voz de gritar, é das poucas autoras a reflectir sobre as consequências da precariedade na área cultural enquanto freelancer, lutando contra a incapacidade de viver do próprio trabalho: obras, filmes e livros mesmo estando ‘‘sempre a trabalhar’’, mas ainda assim batendo-se pelo direito de emprestar as mãos às causas do seu país: ‘‘Eu não quero desistir do meu país’’ (in Revista Gerador 39, Novembro 2022).

Em Dreamocracy, que co-assina com Valérie Mitteaux em 2015, dissecava a crise, retratando o desespero dos portugueses pela sobrevivência ao quotidiano. Mobilizando-se contra a desumanização imposta pela austeridade, o retrato dos jovens activistas que dinamizaram a Manifestação Geração À Rasca, documenta a fundação da “Academia Cidadã”, organismo colectivamente criado para salvaguardar a democracia e preservar o direito universal à dignidade humana. Mais recentemente, na trilogia Mulheres do Meu País (2019), honra a obra homónima da precursora feminista Maria Lamas para descrever a metade silenciosa da população portuguesa, actualizando a luta feminista através de testemunhos directos da resiliência das mais diversas mulheres, acompanhadas em proximidade. E é porque ‘‘as mulheres exigem ter voz’’ que a realizadora adiciona um novo fôlego ao grito mais corrente do seu combate, presentemente pós-produzindo o projecto Mulheres de Abril, a lançar em 2023.

Vermelho é o rio: Natural do Porto, Raquel Freire estreia-se no cinema pela ficção narrativa original e, em 1999, assina a sua primeira curta-metragem, Rio Vermelho. Sustento dos pequenos pescadores e recreio das crianças livres na comunidade da Afurada, nas margens solares deste Douro assiste-se à reprodução da vida. Talvez por conhecer tão familiarmente as águas onde nadou desde sempre, as águas desta jovem rapariga grávida (Sara de Castro) rebentam no arrasto da corrente. O sangue liberto pelo desfiar nocturno até ao parto, parece acalmar o rio, facilitando-lhe o bracejo: resistindo a sós, esta rapariga-sem-nome já nadou até à primeira rocha. Corpo-manifesto da resistência do feminino, protagoniza a dor e o milagre de gerar e dar à luz um ser - um literal nado-vivo. (...)

Ao longo de um percurso de temas solidamente recorrentes, esta luta reúne a ficção alegórica e o realismo documental, como ferramentas que não se contradizem. Activista dentro e fora das telas, Raquel Freire resiste, embandeirando e agitando os seus vermelhos-vivos, nunca tão necessários.

Sabrina D. Marques @ Raquel Freire, Vermelhos-Vivos, Caminhos do Cinema Português, 2022