segunda-feira, 24 de outubro de 2016

2016 / Filmes para Cine-Concerto de Greg Foat Group // Curtas Vila do Conde 2016




Textos presentes no Catálogo do Festival Curtas Vila do Conde 2016


FILMSTUDIE, Hans Richter (1926)

FILMSTUDIE : A DESCONSTRUÇÃO DO FIGURATIVO
O Dadaísmo ou movimento Dada foi uma insurreição multiforme contra a persistência dos valores burgueses que dominavam o panorama artístico da sociedade europeia envolvida na primeira guerra. Surge em Zurique, no clube artístico Cabaret Voltaire, entre Tristan Tzara, Hugo Ball e Hans Arp, opositores à guerra e geradores de um movimento desorganizado que, na sua génese desconstrutiva, se alastrará entre a literatura, o teatro, a dança, o cinema e as artes plásticas como um projecto total de libertação de referentes, clichés e significados. Ao contrário das restantes vanguardas artísticas do início do século XX, os Dadas não propõem um estilo ordenado mas um manifesto pelo seu contrário: através do confronto e da provocação, põem em causa a sistematização e os valores estabelecidos, com iniciativas chocantes e gestos incómodos que, em última análise, questionavam a utilidade e o valor geral da arte. Hans Richter foi activo no epicentro do movimento (1916-1918) e, tal como Picabia, Duchamp, Man Ray ou Léger, é um dos pintores que utilizam o filme para estudar o movimento previamente decomposto nas telas. Em FILMSTUDIE, novas relações estéticas reordenam as formas elementares e fazem corresponder geometria e natureza, abstracto e figurativo, entrecruzando quadrados, triângulos e círculos com olhos, aves e janelas. Assinalando a saída de Richter da imagem abstracta, FILMSTUDIE distingue forma e figura, entre elementos que se entre-respondem pictórica e rítmicamente, constituindo-se como um laboratório experimental dos novos estilos, descodificados, libertos e distintos entre si. Porquê reproduzir o que já existe? Esta problemática, central aos modernismos, é uma constante em Richter que, pintor, designer gráfico e cineasta ensaia, entre a destruição e a concretização, as bases do avant-garde no cinema.


ANEMIC CINEMA, Marcel Duchamp (1926)

ANEMIC CINEMA : CONFUNDIR PELOS OLHOS
Duchamp é uma das mais emblemática figuras do Dadaísmo, apesar da autonomia de uma postura que, de tão dadaísta, recusava até o manifesto Dada e o alinhamento com o respectivo grupo. Se o seu revolucionário urinol (A Fonte, 1917) é um dos alicerces teóricos e cronológicos da arte conceptual, a permanente reinvenção de Duchamp chega até ao surrealismo e ao cinema experimental. A curta Anémic Cinéma foi realizada no estúdio de Man Ray e vem assinada pelo seu alter-ego/heterónimo Rrose Sélavy, personagem feminina fictícia criada pelo artista em 1920. O filme é protagonizado por círculos permanentemente rotativos, que Duchamp apelidou de ‘‘Rotoreliefs’’ e que evocam olhos em mutação permanente. Duchamp ataca constantemente aquilo a que chamou de ‘‘arte retiniana’’, o belo pelo belo que atravessa as várias formas artísticas e, por sua vez, procura colocar a arte directamente ao serviço da reflexão. Interpelando de imediato a atenção, as imagens visam distorcer o estímulo óptimo, dispondo numa sucessão de planos fixos, dezanove discos giratórios que desenham espirais ou dão a ver textos que ininterruptamente giram para dentro uns dos outros. À semelhança de outras obras produzidas pela vanguarda francesa dos anos 20, Anémic Cinéma insere-se nos princípios do cinéma pur,  uma corrente do avant-garde (proeminente entre as décadas de 20-30) que se distinguia pela ausência de personagens e pelo desprezo pelas estruturas narrativas, em favor do estímulo sensorial e do estudo dos efeitos do movimento aplicado aos elementos e formas geométricas.

H20, Ralph Steiner (1929)

H2O : Pinturas de luz e água
H2O (1929) é um de dois poemas visuais do americano Ralph Steiner em torno de água, sendo o segundo Surf and Seaweed (1930). Contemplando os reflexos e as variações da luz e da sombra na superfície da água, este filme isola e observa, ao detalhe, a acelerada reformação de imagens nos movimentos da natureza. O tom meditativo da cadência entre os planos sugere a sucessão associativa de um exercício de montagem sensorial, endereçado à imediatez dos dados da experiência. Formam-se empáticos quadros como autênticas pinturas ininterruptas onde as imagens, em permanente ponto de oscilação, convocam uma relação afectiva. A sensação viva de beleza, decorrida da sucessão rítmica desta narrativas de luz, reconfigura a postura contemplativa do espectador. As capacidades deste envolvimento evocam os cúmulos líricos do expressionismo abstracto, com uma fluidez demonstrativa da unidade possível entre a representação figurativa e abstracta do mesmo elemento natural. Na categoria do cinéma pur pela sua atenção exclusiva aos elementos formais, alicerça as bases de um estilo poético que terá seguidores tão influentes como Brakhage ou Len Lye. Um exercício pioneiro de concentração visual que, apesar de assinalar o seu primeiríssimo contacto com as imagens em movimento, permanece até hoje como uma das mais influentes contribuições de Steiner (também fotógrafo e documentarista) ao cinema avant-garde.


Mechanical Principles, Ralph Steiner (1933)

MECHANICAL PRINCIPLES : Bailado Mecânico
Tal como H2O, Mechanical Principles (1933) segue as linhas do cinéma pur na sua constituição formal, baseada em ritmo, composição e movimento e, apesar da aparente disparidade entre os filmes, ambos se concentram, em primeiro lugar, no estudo do ritmo. Estes Princípios Mecânicos constituem-se como uma investigação sobre a repetição e o automatismo da maquinaria e da mecânica. Cada detalhe elide o todo, abstraindo-se dos propósitos úteis destas estruturas e engenhos. O impacto é imediato. O fascinante resultado desta concentração é a inesperada vitalidade que nasce deste mundo sintético, no hipnotismo de uma dança pendular de aços, engrenagens, tubos e rodas dentadas. Apesar da artificialidade dos mecanismos, o seu retrato é delicado e distante da aparente frieza. Este elogio da máquina evoca as linhas gerais do Futurismo mas sem a ‘‘violência arrebatadora e incendiária’’ do seu manifesto. Uma cativante beleza brota destas paisagens metálicas em plano aproximado e sublinha a fluidez rítmica que, com optimismo, celebra o futuro do homem pelo progresso técnico.


LICHTSPIEL OPUS 1 (1921)

LICHTSPIEL OPUS 1: O abstraccionismo empático
Walther Ruttmann é, a par de Viking Eggeling e de Oskar Fischinger, um dos pioneiros alemães do cinema experimental. Entre 1921 e 1925, produziu, realizou, animou e editou uma série de quatro ‘‘Lichtspiel Opuses’’, contribuindo decisivamente para um conjunto de inovações técnicas e criativas que ajudaram, na Europa, a elevarao cinema ao estatuto de sétima arte (recordando que o Manifeste des Sept Arts de Canudo sairá apenas em 1923). Efectivamente, a génese experimental do cinema avant-garde recebe a influência directa dos movimentos modernistas e o primeiro título da série é um ostensivo herdeiro dos abstraccionismos e dos construtivismos. A  partir de figuras pintadas sobre vidro, Ruttmann cria uma forma primitiva de animação, popularizada como a primeira animação a ser exibida em sala. Sem se circunscrever num enunciado acabado, faz contrastar uma variedade de formas e de cores em mutação constante, que fluem num movimento orgânico e apaziguador. Através de Lichtspiel Opus I, Ruttmann responde genialmente a uma das mais iniciais críticas à arte abstracta: a acusação simplista de que, na ausência de realismo num estilo artístico, deste se deduz a incapacidade de estabelecer empatia com o receptor. De todos os opuses de Ruttmann, este é talvez aquele que mais procura encontrar-se com o espectador: a sucessão de sequências coloridas conduz-se de uma forma fundamentalmente ordenada, comprovando a intenção narrativa para lá da multiplicidade de legendas possíveis.


LICHTSPIEL OPUS 2 (1923)

LICHTSPIEL OPUS 2: Orgânico versus Geométrico
Lichtspiel Opus II complexifica o título predecessor. Na sobriedade de uma nova paleta, o ritmo acelera-se e os ângulos rectos dos quadrados e rectângulos parecem ameaçar as curvas orgânicas das formações arredondadas. Das várias formas que colidem destila-se a mesma origem - o ponto, primeiro tema de estudo de Lichtspiel Opus II.  De novo alicerçado nos ideais do movimento construtivista, Lichtspiel Opus II é enfaticamente material e assenta, precisamente, na ideia da arte como construção, investigando os elementos-base da gramática figurativa e elogiando o gesto construtor. Os padrões reformulam-se sobre os fundos escuros que falam da forma como matéria-prima da imagem, em ponto de mutação constante. A simplicidade formal das novas obras evoca a expansão industrial, onde a precisão dos desenhos técnicos é a base indispensável para cada nova construção. Nome essencial do cinema avant-garde, Ruttmann deixou simultaneamente um legado na música. Com Piscator, trabalhou em ‘‘Melodia do Mundo’’ (1929) mas celebrizar-se-ia com ‘‘Berlim: Sinfonia de uma grande cidade’’ (1927), a sinfonia urbana que dedicou à Alemanha. Ainda que o construtivismo tenha influenciado decisivamente a arquitectura e o urbanismo alemães, principalmente inscrito nos contributos da Escola de Bauhaus (subsidiada pela República de Weimar), com a ascensão do nazismo, os preceitos vanguardistas da escola de Gropius são rejeitados por ‘‘anti-germanismo’’. É neste contexto que, após a inventividade das suas abstracções, Ruttmann recua nas suas liberdades para ceder às pressões com que Goebbels previa que a arte do Terceiro Reich fosse mais inteligível ao povo alemão, de estética conservadora e focada no retrato heróico da Alemanha nazi.

LICHTSPIEL OPUS 3 (1924)

LICHTSPIEL OPUS 3: De Tatlin a Ruthmann
Decorrido do futurismo italiano e do cubismo francês, o construtivismo surge na União Soviética, por volta de 1913, com Vladimir Tatlin na frente de um movimento que, através da arte, celebra a máquina, a tecnologia e o utilitarismo, procurando ‘‘construir arte’’. Igualmente radical, Malevich propõe um "mundo da não-representação" e abre caminho para a morte da figura. Em 1927, expõe 70 obras suas em Berlim e o seu ensaio O suprematismo ou o mundo sem objecto é publicado pela Bauhaus. Tatlin é igualmente apreciado entre os estudantes alemães e, em 1920, Grosz e Heartfield são fotografados a segurar uma placa onde se lê ‘‘A arte está Morta - Vida Longa à Máquina de Tatlin’’. Esta é a Alemanha de Walther Ruttmann, estudante de arquitectura, pintura e design, disciplinas a que uma precursora Bauhaus aplica os princípios modernistas. O abandono progressivo, por Ruttmann, da abstracção da sua série Lichtspiel Opus para trabalhar a partir da realidade da paisagem urbana em Berlim: Sinfonia de uma grande cidade argumenta como, independentemente da ideologia que lhe subjaz, a ditadura estende-se à manipulação da arte e da cultura para fins propagandísticos. Distintamente, a ascensão dos regimes fascistas na Alemanha e na Itália e comunista na URSS, significou a repressão das vanguardas e a exaltação de um princípio de realismo que procura, não a interpretação subjectiva da obra artística pelo espectador, mas a sua compreensão imediata pelas massas. Na sua ‘‘inconveniente’’ abstracção, este Lichtspiel Opus III dá seguimento ao estudo prévio da série de Ruttmann das relações entre formas, cores, geometrias e figuras.

LICHTSPIEL OPUS IV (1925)

LICHTSPIEL OPUS IV: A Geometria Imperfeita dos Jogos de Luz
Lichtspiel Opus IV,  último episódio da série de Ruttmann, é o mais depurado e minimalista dos quatro. Um padrão frisado a preto e branco multiplica ritmicamente um desenho composto por sucessivos rectângulos até que uma amorfa figura arredondada surge, adicionando cor e interrompendo a fixidez rectilínea das figuras prévias. O desenvolvimento progressivo desta série experimental ao longo de quatro anos, permite a Ruttmann aperfeiçoar autonomamente as suas técnicas de animação e estudar a musicalidade decorrente da continuidade visual. Face às restantes curtas, Lichtspiel Opus IV é a que mais próxima se encontra do princípio construtivista do automatismo. Trabalhando com a sobreposição de elementos, constrói padrões em movimento que, primeiramente, reflectem a relação de correspondência entre a luz e a cor, ou de oposição entre horizontal e vertical, entre recto e curvilíneo. Apesar do relevo dado à figura geométrica ao longo das várias experiências, a dimensão artesanal da produção destes filmes espelha-se na relativa imprecisão dos seus contornos. O resultado de cada um destes Lichtspiel ou jogos de luz revela a manualidade de um processo que, no cintilar da projecção, transporta a permanente capacidade de convocar no espectador múltiplas reacções afectivas.

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