quarta-feira, 25 de outubro de 2017

2017 / Lifeforce ~ in memoriam: Tobe Hooper (1943-2017)


Lifeforce (1985) 

´´Projecto: Aumentar a alma sem MORRER.´´ Gonçalo M. Tavares (Livro da Dança)
Com a sua narrativa desconstruída, arrojados efeitos visuais e cenários de assombro,  Lifeforce (1985) é um filme nada canónico. Mas é junto dos clássicos que melhor o encontro. “Animula vagula blandula / Hospes comesque corporis / Quae nunc abibis? / In Loca / Pallidula rigida nudula nec ut soles dabis Iocos”. Foi Adriano, o mais poético dos imperadores romanos, quem escreveu os versos que iriam servir de ponto-de-partida a Marguerite Yourcenar, que lhe reconstruiu os diários (Memórias de Adriano, 1951): “Pequena alma terna flutuante / companheira e hóspede do corpo, agora se prepara para descer a lugares / pálidos, árduos, nus / onde não terás mais os devaneios costumeiros”Lifeforce é um lugar de investigações da anima latina: a alma é o fôlego que insufla de vida os corpos, condição indispensável para a sua força. Aqui, no entanto, a ausência de alma desvitaliza o corpo, mas não o extingue: a vítima está em latência e, como um vampiro, precisa de ‘‘infusões regulares de energia’’. Agora seco, o seu corpo ‘pálido, árduo, nú’ mantém a memória do recente élan vital (Bergson) e faz por prender-se à vida em seu redor, sugando o ar dos corpos vivos para se reanimar e recuperar para si o fôlego, o sangue e a carne plena. Estamos no domínio do vitalismo, onde a vida é o ímpeto e destino do organismo humano. E o que é que dá vida? A alma, a génese, a força anímica dos corpos. Ouvimos em Lifeforce: ‘‘A teia do destino carrega o teu sangue e a tua alma de regresso à génese da minha forma de vida.’’ Entre estes space vampires, deslumbrantes corpos humanóides sedentos de vida humana, a alma quer mais alma: Dum vivimus, vivamus! (Enquanto vivemos, deixem-nos viver!), diz uma outra expressão latina, em alusão a uma potência constituinte – o princípio inato da preservação dos corpos vivos – que nos reencaminha até Tales de Mileto, o pré-socrático que começou por suspeitar que as formas de circulação da energia definem o próprio conceito de energia. Mas o que é que estes homens fazem ao corpo que, por um momento, viram morto e depois volta a insuflar-se de vida? A lei é matá-lo, sempre. A morte é o nosso medo e os mortos não pertencem entre os vivos.
Face a um filme como uma exclamação filosófica sci-fi sobre a hipótese eterna da alma que, errante face à decrepitude fácil dos corpos, é capaz de vivificar outros, regressamos a Yourcenar para lembrar a sua Obra ao Negro (1968). Se os insucessos alquímicos do precursor Zénon não encontram o Elixir da Vida, está exposto o mais primordial confronto de escalas entre corpo e alma: nem os espíritos maiores sobrevivem à injusta decadência da matéria. Ao assinar a incontornável De Anima/Da Alma, Aristóteles assumia, entre uma miríade de nuances sobre os princípios comuns a tudo o que vive, ali ‘‘considerar toda a investigação respeitante à alma como sendo de importância fundamental”. E Tobe Hooper sempre soube: mais importante do que trazer em si o génio, é desenvolvê-lo e largá-lo ao mundo, seja de que forma for. Resta-nos copiar o vampirismo de recordar a fundo e, insuflados pelo que deles cá ficou, daí sorver lifeforce.
Sabrina D. Marques

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