sábado, 13 de junho de 2020

2020 / Cátia Cardoso entrevista Sabrina D. Marques (UBI, 14.6.2020)


CÁTIA CARDOSO (CC): Como começou a escrever sobre filmes?
SABRINA D. MARQUES (SDM): Fui adolescente nos anos 2000 e, como muita gente, troquei o habitual diário por um blogue sob pseudónimo e aí falava de cinema, mas também guardava poesias, escrevia uns versos próprios muito pueris, compartilhava músicas e fotos, entre outras coisas. Motivava-me fundamentalmente a possibilidade de escrever livre e extensivamente sobre o que quer que me apetecesse, aliada às trocas que surgiam nos comentários e fóruns da especialidade. A certa altura, larguei o nickname e comecei a assinar os textos. Através destas redacções que compartilhávamos com alguma ingenuidade, aproximámo-nos em gostos e interesses e correspondíamo-nos com gente de todo o país. Criaram-se laços e a blogoesfera cinéfila tornou-se um pequeno clube de amigos que, muitas vezes, combinavam encontros presenciais em festivais, faculdades ou em sessões em salas de cinema ou na cinemateca. A partir de certa altura, a popularidade da blogosfera decresceu devido à massificação das redes sociais. Se a discussão ganhou a agilidade do imediatismo ao passar para o Facebook, perdeu maturidade e complexidade, na minha opinião. Assim, para recuperar esse ‘‘pensamento organizado’’ implicado na escrita (previamente investigada) de um texto, outros canais e projectos específicos começaram a surgir, perdurando até hoje - como, por exemplo, o site À Pala de Walsh, que integro desde a sua fundação, apesar de não conseguir, presentemente, ser muito regular na colaboração.

CC: Do seu ponto de vista, qual a importância de se pensar sobre os filmes, por exemplo, através de uma abordagem mais histórica?
SDM: A minha análise consiste sempre em integrar o meu olhar sobre os filmes numa perspectiva histórica, situando as obras em função do contexto do percurso do realizador e dos tempos e movimentos em que se inscreve, e que também as definem. A importância desta actualização é, precisamente, o progressivo tomar de consciência do movimento de devir em que, em suma, toda a história da arte (e do cinema) se inscrevem, reconhecendo ecos, homenagens e influências.

CC: Relativamente ao trabalho de história que faz, costuma receber feedback de leitores?
SDM: Já recebi feedback de alguns leitores por apreciarem certos artigos. Também é simpático ir apanhando, às vezes, excertos de textos devidamente creditados em teses ou papers. É sinal de que alguém lê e de que a disponibilização online dá frutos e, efectivamente, auxilia a disseminação livre da produção de conhecimento. 
 
CC: Em que medida é que a sua experiência profissional pode ser uma mais valia para a escrita dos seus textos? 
SDM: Se a experiência de rodagem influencia a experiência na escrita? Decisivamente. O mais importante resultado dessa experiência é o contínuo processo de desmistificação. Ao trabalhar com equipas, ganhei progressiva consciência do trabalho que as coisas dão a fazer e dos meios envolvidos. Isso fez-me respeitar cada vez o trabalho dos meus colegas mas também ter a consciência de que nada se faz sem dinheiro ou com poucos meios, como muita gente quer fazer parecer por causa da ‘‘democratização pelo digital’’, que é bastante relativa. Às vezes, dou por mim a analisar os filmes do ponto de vista da produção, espantando-me com a elaboração de um determinado cenário ou com o nr de figurantes de uma cena, por saber que aqueles minutos são caríssimos. Se isso me deixa mais de fora da estória, também me situa num lugar muito distante da postura taxativa e virulenta que se tem na adolescência, capaz de rejeitar um filme ou um autor com uma só frase. Nessa fase, temos imensas certezas de tudo, julgamos saber separar o bom do mau a régua e esquadro e achamo-nos muito espertos. Crescer é, precisamente, aprender a apreciar certas ideias ou intenções que, não sendo tão espectaculares, acabadas ou bem conseguidas, revelam um olhar interessante ou problematizam um determinado tema pertinente. Neste momento, relativizo e, mesmo quando não gosto de um filme, quase me apetece dar ao autor um prémio pelo esforço porque cada filme que existe é um pequeno milagre - especialmente se estivermos a falar de cinema português...

CC: Acredita que as pessoas, hoje em dia, prefiram ler informação, por exemplo histórica, em vez de considerações críticas sobre os filmes?  
Há público para textos de natureza diversa e, com a amplificação dos vários cursos de cinema, vídeo e multimédia no nosso território, há cada vez mais leitores sobre o tema. 

CC: Considera que o espaço da crítica está a desaparecer, em Portugal, dando lugar à informação sobre cinema?
SDM: Não. Acho que a crítica está a amplificar-se, e a informação sobre cinema também. O que se modificou foi a possibilidade de desempenhar a profissão de crítico, de forma sustentável ou a tempo inteiro, como talvez já tenha sido possível no passado. Acho que há cada vez mais plataformas onde se pode escrever livremente e sem as restrições editoriais das publicações impressas. Estou convicta de que, havendo qualidade nos textos, eles angariarão o seu público particular, com certeza.

CC: Enquanto cineasta, como é que vê a crítica de cinema, em Portugal?  
SDM: Com o contexto português em vista, vou começar por falar da crítica de cinema enquanto prática (profissional ou amadora). Se, por um lado, testemunho indirectamente como a crítica de jornal vem sendo, com o desaparecimento dos jornais em formato papel, progressivamente encurtada, a pouca liberdade concedida aos ‘‘críticos profissionais’’ é ganha pelas possibilidades da crítica online. Se a crítica de cinema parece ser cada vez menos desempenhada enquanto profissão remunerada é cada vez mais desenvolvida em sites, blogues, colectivos, fóruns da especialidade, que viram a discussão expandida. Não só os autores da Nouvelle Vague vieram dos Cahiers directos para a realização cinematográfica: no caso português, cineastas como Miguel Gomes, Lauro António ou João César Monteiro, são exemplos que, no seu percurso, migraram entre a teoria e a prática. No meu caso, ter-me dedicado a analisar cinema numa fase prévia a um caminho mais prático na área, teve as suas vantagens e desvantagens. Como pontos mais negativos dessa minha experiência, sublinho a falta que tenho vindo a sentir (mas que estou a trabalhar para colmatar) de um domínio técnico das ferramentas e equipamentos, devido ao meu passado mais teórico. Isso torna-se particularmente importante quando se quer realizar documentários, onde os meios são escassos, o que me torna um pouco mais dependente dos técnicos. Sinto que ainda estou a formar-me, ao tentar perceber um pouco mais de lentes, diafragmas, objectivas e luz. Algo que muitos dos professores mais teóricos ou historicistas desprezam muitíssimo, julgando que os alunos têm é de conhecer a história do cinema para, na sua ingenuidade, não realizarem algo básico e já visto, por puro desconhecimento do passado que os precede. Mas saber como é que uma dada imagem se constrói é extremamente importante, estou convicta. Saber como virar um projector até alongar expressivamente uma sombra ou que filtros é necessário sobrepor para tornar roxa a luz de uma cena.... Certo que são competências que os técnicos dominam por nós mas clarifica-nos a todos saber o que lhes estamos a pedir. Por outro lado, a minha cinefilia é bastante útil à hora de filmar, permitindo tomar decisões formais agilmente e munindo-me de referências que permitem explicar rapidamente aos técnicos o que procuro, quando penso num determinado plano, mood ou movimento de câmara. Esses hábitos sedimentados pela análise também me ajudam à hora de tentar explicar - de forma visual - os filmes que eu ou outros idealizámos no papel. Isto porque, no presente, trabalho essencialmente em argumento e escrita de projectos. Como é sabido, entre as gerações mais jovens, as condições para a realização de projectos próprios são uma benesse raras vezes concedida.

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