terça-feira, 16 de julho de 2013

2013 / LUMIÉRE / Acontecimentos



L'Amour fou (Jacques Rivette, 1968)

É bem explícita da política deste Governo relativamente à cultura:
não se pode descer mais. 
José Neto, cidadão português

É impossível não enunciar hora e lugar ao começar um balanço destes, e de vistas postas em Lisboa, o ano marcou-se por falta e regressão. A mediocridade do governo português é mediática e no pequeno ecrã que a todos concentra a atenção e o olho crítico, é a narrativa da crise que se impõe, escorrida em surreais episódios diários que se sequenciam entre implausibilidades, desordem e geral morbidez. Só que é a realidade das realidades. Concretiza-se em instituições sabotadas por orçamentos que se amputaram, leis do Cinema suspensas e depois adulteradas, bolsas de investigação reduzidas e demais crimes contra o desenvolvimento do país. Enquanto isto, recessão, as salas perdem espectadores ano após ano. De facto, se os filmes de acção e aventura funcionam como experiências que se vendem a quem escasseia acção e aventura entre os seus dias, este país de hoje parece dispensar a fome de ficção. A acção está viva, é a realidade das ruas e, num clima que a todos ferve ao limite, estende-se a narrativa da realidade como se de um cinema contínuo se tratasse. Em qualquer esquina, vozes e palavras, protestos e manifestações se levantam. É tal o nível de absurdo na governação por um lado e tal o nível de consequente indignação por outro, que nestes tempos impossíveis de serem vividos que vivemos tudo pode acontecer.

Todas as estruturas relacionadas com a educação, arte e cultura afiguram-se hoje como holográficas: são espectros sempre em vias de desaparecer. Fazem tremer a paisagem urbana: agora um cinema, em seguida a sua falta (só em 2013, Lisboa viu fecharam-se o Londres e o King). Não garantem sequer acessos mínimos aos meios de produção - depois de um ano sem quaisquer subsídios, só em 2013 se retomaram - mais escassos - os apoios públicos. Em suma, é uma questão ideológica: o mesmo país onde vivem Manoel de Oliveira, Pedro Costa, Miguel Gomes, Manuel Mozos, parece exterminar carreiras e querer erradicar de vez essa rara espécie em vias de extinção chamada de cineasta profissional.


DO LADO DA RESISTÊNCIA

Segundo dados do ICA (Instituto do Cinema e Audiovisual), o filme mais visto em 2013 em Portugal foi A Gaiola Dourada, comédia saloia em estilo televisivo e, segundo o mesmo relatório, o filme mais premiado além-fronteiras foi E agora? Lembra-me, o prodigioso filme-testamento de Joaquim Pinto que ainda não estreou comercialmente nas salas. Se, perante a falta, redobra o valor do que se passa, Joaquim Pinto é um nome central do lado da resistência - à qual se adiciona um outro Joaquim, Joaquim Sapinho: com Haden Guest, participa numa essencial programação/seminário que se estende até 2014 – «Harvard na Gulbenkian»– e agrupa títulos portugueses e estrangeiros pouco vistos (Manuela Viegas, António Reis, Manuel Mozos, Ben Rivers, entre outros).

Em sala, pasmo, estreiam dois Ozus –Viagem a Tóquio e O Gosto do Saqué, acontecimento que alguma crítica impressa tão bem assinala ao incluir estas obras-primas dos anos 50/60 nos seus tops anuais de 2013, assim diagnosticando faltas gerais no circuito de exibição. No sempre excepcional trabalho da Cinemateca, é difícil destacar entre tanto valor, mas talvez tenha sido a retrospectiva integral de Fritz Lang o que mais me marcou. 


ESCAVAÇÕES PRIVADAS

A arqueologia doméstica dos meus primeiros meses conduziu-me até dois autores-monumento, a propósito de dois dossiers colectivos em torno de Allan Dwan (para a Revista Lumière) e de Raoul Walsh (para o site À Pala de Walsh). Perante tão densos legados, um infinito de títulos onde sempre voltar. E foi pelo mar, horizonte de ninguém que convida à fuga e ao esquecimento, que me escondi em Enchanted Island, em Sea Devils, em Band of Angels, em Battlecry, em Mamie Stover.

Foi tempo de revisitar Rivette, e de divagar pela sua Paris : Paris Pertence-nos, A Ponte do Norte e o Amor Louco são lugares de horas embriagadas, desenhadas pelos loucos que queríamos ser. Em A Religiosa, outras trangressões em que se descose um corpo contido, numa primordial raiva por mais vida, por posse eterna de juventude.

Eis que em horas de Verão, Jean-Claude Brisseau me entra seriamente olhos adentro como um dos mais importantes cineastas da contemporaneidade. Não só pelo seu recente A Rapariga de Parte Nenhuma, mas por obras-primas como Coisas Secretas e À Aventura, fetichismos ou feiticismos que hipnotizam sem regresso. Num filme diferente, Deste Lado da Ressurreição, de Joaquim Sapinho, uma força semelhante do corpo-limite lança-se para lugar incauto, além –e sente-se o rasgo de um mistério que se testemunhou e se guarda em silêncio–. Alain Resnais demonstra como ainda não vimos nada e desmantela o dispositivo-cinema até ao tutano à procura de isolar os seus elementos –apurar, revelar, relacionar a ficção com a realidade e as personagens com os actores, integrar o cinema na vida–. Ao fechar do ano, é pela voz radical de Ernesto de Sousa que me inspiraram os gritos que abanaram estruturas em definitivo, e descubro em Dom Roberto o secreto filme inaugural do novo cinema português. Nesta altura, a Cinemateca apresenta o seu Almada Um Nome de Guerra, uma tão pouco exibida obra aberta que ainda hoje nos espanta pela sua inventividade multiforme. A ser indispensavelmente evocados, alguns dos gigantes que o ano me trouxe : Napoléon de Abel Gance, I was born...but de Ozu, Liliom de Fritz Lang e La Ronde de Max Ophuls, filmes para todos e para sempre, em qualquer lugar ou tempo.



Sabrina Marques é investigadora de cinema, artista visual e colabora com diversas publicações de cinema (À Pala de Walsh, Cinédrio, La Furia Umana, etc).

Paris nous appartient (Jacques Rivette, 1961)

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