sábado, 11 de janeiro de 2014

2013 / Allan Dwan : IDOS ROSTOS MUDOS


IDOS ROSTOS MUDOS
Sabrina Marques
 REVISTA LUMIÉRE | ALLAN DWAN DOSSIER 2013



“Era uma vez um tempo, há não muito tempo atrás, em que os rapazes sonhavam com grandes heróis que ousavam e disputavam, que lutavam e conquistavam, que levitavam e sobrevoavam os ares... os seus sonhos realizaram-se na forma de Douglas Banks.” Jeanine Basinger

A Máscara de Ferro carrega ainda hoje a força de um adeus sentido : é Douglas Fairbanks, a grande estrela do mudo, quem através dele se despede. Herói de todos os heróis, também ele um axioma, em toda a hipnotizante vitalidade preencheu de aventura os dias dourados do mudo. Estava-se em 1929, ano do big crash, mas também o primeiro ano da história de Hollywood em que a produção de filmes sonoros predominou sobre a de filmes mudos. Um ano em que um filme como A Máscara de Ferro só pode, portanto, surgir como uma assumida construção da nostalgia. Pela primeira vez se faz Fairbanks ouvir, estendendo um monólogo declamado em substituição de um prólogo que habitualmente seria descrito por intertítulos. Pela primeira vez, um herói por si protagonizado morre no fim, juntando-se ao seu trio de companheiros numa maior aventura além. E pela primeira vez, em lugar de um THE END, se desenha um THE BEGINNING, no plano final de A Máscara de Ferro.
Poucos assim foram, como Fairbanks, figura à qual a mise-en-scène se subordina. Dwan sabe-o, sabe que esse que foi Zorro, foi Robin dos Bosques, foi Ladrão de Bagdade, foi Pirata, e que na sua juventude foi um moderno D’Artagnan (em A Modern Musketeer, 1917), se expande numa presença soberana, que potencia a expressão do seu corpo até ao fim das suas extremidades, e que não saberia já adicionar-lhe a linguagem da voz, matéria para um outro treino.
O mudo foi corolário do modelo pantomineiro tanto quanto caminho para o seu esgotamento. A expressão acentuada de corpos e rostos procura conseguir a mais imediata leitura, e o rosto transforma-se no mapa de constantes eventos. O rosto do herói, em mutação sob o poder do close-up, é o mais iniciático, mais empático elo com o público, e é a chave do actor para ser também star. A emergência do starsystem é a época fértil dos halos e das deificações. A maravilhosa invenção recente é entretenimento, mas suficientemente sério para não faltar à arte; é negócio, mas suficientemente afectivo para não deixar de se lembrar que é do surpreendente que nasce a lenda. Com arte ou sem ela, os anos dourados são sobre o triunfo do espectáculo. O traço firme de Dwan sempre enfatiza o storytelling, eternizando odisseias maiores do que a vida consumadas por heróis perfeitos, hipnotizando o imaginário colectivo com contos de aventura e de romance só assim descritos na sala de cinema (e que encontram o seu paralelo de hoje num modelo francamente distinto). Entre as longas décadas de um cinema alicerçado em construções arquetípicas, os filmes de heróis de Dwan são a mais culminante redundância do seu estilo. A adaptação literária de populares romances pitorescos, a encenação em conformidade com uma outra época, os clichés que se replicavam em convenções narrativas (“boy meets girl”, “happy ending”...), a estilização cómica das personagens e os gesticulados exageros do género slapstick reúnem-se para engendrar barroquíssimas comédias, complexificadas por elementos simbólicos (como o crachá da rainha em Os Três Mosqueteiros ou o medalhão dividido em dois em A Máscara de Ferro) que aguçam o decorrer da acção.
Mas, se se percebe a olho nu que a adequação de um Douglas Fairbanks ao papel de herói está no imediatismo do seu porte atlético, o que afasta Dwan, ao serviço do star-system, do ludíbrio, da mera resposta aos impulsos adolescentes de todo um público movido pela fome de idolatria? É que, ao perceber a natureza das histórias, Dwan liberta-as. Histórias já conhecidas são matéria-prima moldável que cria novas estruturas, estruturas precisas e inaugurais que, à velocidade voraz da inovação no cinema, desenham novas formas para as figuras de ontem - e pelo novo medium se perpetuam. Como nesta Máscara de Ferro, em que, pela morte de D’Artagnan, é Fairbanks quem se despede da sua arte e de uma era que se extingue. Propositadíssimo paralelo, uma vez que na última instância da trilogia dos Mosqueteiros a opressão do uso da máscara implica a dissolução da identidade e do poder de Luís XIV (o auto-proclamado Rei-Sol por direito divino) quando este é raptado e substituído no trono pelo irmão gémeo. Do mesmo modo, a ênfase no rosto aliviar-se-ia com a oportunidade que o som concedeu à expressão vocal. Aparte do discurso inaugural, A Máscara de Ferro é um filme mudo mas, em 1952, surgiria uma versão renovada que, a par da montagem distinta, substituía os entretítulos pela narração de Douglas Fairbanks Jr. E, no final, é pela voz deste que se ouve o que é menos um epílogo e mais um epitáfio: “E assim se foi um bravo e glorioso homem, com honra. Basta pensares e voltaremos a viver. Viveremos para sempre, porque connosco, agora como sempre, é um por todos e todos por um.”
O romance de Alexandre Dumas seria adaptado por Dwan pelo menos quatro vezes : Richelieu (1914), A Modern Musketeer (1917), The Iron Mask (1929) e The Three Musketeers (1939). E se, entre estes filmes, o primeiro hoje se encontra perdido, o último, já sonoro e sem Fairbanks, seria um desastroso exercício de excesso, exemplo da instantânea sobredosagem de som e de música com que se recebeu os talkies.
A figura de Fairbanks é o emblema dessas primeiras décadas dos filmes de aventura, género intimamente corpóreo que exalta as façanhas do herói sempre homem. A supremacia do ideal viril, que se supera em destreza e valentia e que corajosamente enfrenta as mais altas batalhas e aventuras, é o maior fetichismo da época: nenhum outro género então mostraria assim os corpos. Neste compartimentado género fantasioso, fixado por traços sobremasculinizados (que, para lá da época que o datou, talvez só aos macmahonistas agradariam), os mesmos clichés repetidamente surgem: é o herói que triunfa, é o vilão que tem o que merece e são as mulheres que estão num plano secundarizado, em que o seu amor é tantas vezes a recompensa pelo esforço da demanda heróica. Estereótipos replicam estereótipos e, se há uma indubitável atmosfera conservadora que subjaz à movimentação repetitiva do género, afirmamos Dwan como um realizador conservador? De todo. Estamos perante um cinema de colisões, capaz de absorver todo o tipo de particularizações em que filmes como A Máscara de Ferro ou Os Três Mosqueteiros se possam encaixar. Quase como se por excepção. A sua arte - que é o que há a distinguir para a justa apreciação do seu legado autoral pelo hoje e pelo amanhã - revela-se com maior distinção noutros filmes. Filmes que enaltecem a força feminina, em histórias lideradas por mulheres ou com personagens femininas memoráveis por uma astúcia ímpar, como em Josette (1939), mas principalmente, nos precursores Woman They Almost Lynched (1953) ou Slightly Scarlet (1956). Com o massivo corpo de um trabalho pioneiro (que quase chega aos 400 títulos), com Dwan tanto se pergunta como se responde ao que deve ser o cinema.

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