sábado, 11 de janeiro de 2014

2013 / RICHARD SARAFIAN : Como é que os filmes acabam ?

Richard C. Sarafian: como é que os filmes acabam?
por Sabrina D. Marques / Setembro 25, 2013 @ À PALA DE WALSH


O nome de Richard C. Sarafian (1930-2013) não evoca imediatamente amplo reconhecimento. Foi, no entanto, o autor dessa obra nuclear do cinema do século XX que é Vanishing Point (Corrida Contra o Destino, 1971) e, no mesmo ano da fortuna, de Man in the Wilderness (Um Homem na Solidão, 1971). A grandeza excepcional de um ou outro bastaria para o saudar à partida, mas é por Man in the Wilderness, filme imperdoavelmente esquecido, que aqui lhe alongamos o adeus sentido.






dos trabalhos do mundo corrompida
que servidões carrega a minha vida

Herberto Helder in Servidões

1. ACONTECEU NA VIDA REAL Há uns anos, recebi uma SMS do meu amigo Mário, acabado de sair da Cinemateca. Dizia: “vê o ‘Man in the Wilderness’, o Tree of Life no Oeste”.  Não me enganou. Fiz o que me cabia e, daí em diante, partilhei o título com o mesmo íntimo sentido de dever. Era 2011, ano do cinema de Terrence Malick e da sua pouco consensual abordagem – essencial, para mim – de religação à experiência cinematográfica. Foi precisa coragem e os palpites religiosos inscreveram-se sem recuos no seio do relativismo contemporâneo. Man in the Wilderness (Um Homem na Solidão, 1971) segue este caminho caleidoscópico de espanto e de estudo, em geral, da beleza de tudo o que existe contra o nada. Ainda exercem fascínio sobre mim, para lá de toda a sua diferença, cada qual guardado como uma promessa cumprida das qualidades luminosas do cinema. Man in the Wilderness abre com uma metáfora certeira: a paisagem montanhosa é atravessada por um mastro de velas recolhidas a parecer uma cruz em sobrevoo. Caricata visão, o barco vai de carroça. Vinte e duas mulas arrastam-no. Estamos em 1829, dizem-nos, e a história que se segue aconteceu na vida real. A expedição do Captain Henry ruma ao Mississippi para vender mercadorias preciosas. A travessia do noroeste americano é o plot do western: o encontro com os índios é sempre hora de disputar as diferenças entre os homens, entre as civilizações, entre as religiões.

2. AS IMAGENS EM QUE SE ACREDITA “Quem fez o Mundo?”, questão cuspida pela voz do professor, exaltação de uma régua por chicote na sua palma da mão, a exigir ao aluno resposta pronta. “Deus. Deus fez o mundo. Deus. (a régua chicoteia a mesa) Deus. (a régua chicoteia a mesa) Repete. Deus. Repete. Deus”. Da mudez dessa criança de ouvidos cheios de deus nasceria a descrença feita homem. A dureza amarga do capitão Zachary (Richard Harris) é o centro em mutação desta história. São os índios que lhe respondem com a sua narrativa do Mundo: para a posteridade, pintam na pele curtida a inesperada imagem do barco sobre rodas que atravessa a paisagem. Olham em redor para guardar o que vêem: como as árvores, desabrocham para fora de si, crescem em estatura e em vigor, dependem da água e do sol de pés pregados à terra e é assim que procuram o divino – mais fora do que dentro.

3. UNIVERSAL RESISTÊNCIA Este é um filme sobre o Homem que se faz. Foi ferido e deixado para trás. “Ele não é humano”, ouve-se dos que não o salvam, porque o corpo de Zachary resiste mais do que o previsto. Um corpo crístico que jaz sem morte e com todas as chagas? Prova de uma santidade possível? Talvez. Mas longe do culto cristão do martírio, este corpo não se transcende, projectado além. Este corpo é presente, a possibilidade da sua cura está na terra e o seu projecto concentra-se na luta prática pela sobrevivência, o dia a dia. O elogio à resistência do corpo, rijeza do oeste que enobrece o cowboy, aqui enobrece o índio também. Homens e mulheres, tal e qual. Zachary a ser o primeiro dos homens. Ele é qualquer homem, para lá de etnia, porque em primeiro lugar, ele é um corpo que sobrevive. O tronco arrasta-se. As extremidades do seu corpo procuram as ténues mobilidades. Alcance para as pontas dos dedos. Rectidão para o torso curvado. Instrumentos para a necessidade. Combate os ursos e os lobos. Disputa com as feras a carne da caça, captura o lince para se aquecer nas suas peles. Procura as bagas, os animais, o alívio das ervas boas, a companhia amiga de um coelho branco. Não basta nascer – ao corpo humano cabe o trabalho de inserção na natureza. Próximo das fundações da vida, é o elogio do corpo que resiste, que suporta as estações e sobrevive às fraquezas do seu estado limite. A ferida do corpo foi menos grave do que a morte, é disto que se trata: disto não morrerá ainda. E o trabalho da resistência é esse: superar as pequenas doenças contra a doença letal. Resistir, encontrar sempre as possibilidades da cura, apesar de o corpo afinal nunca se curar de si. Resistir, sentir a vida apesar da morte. Resistir, querer a vida no corpo até às extremidades. Resistir no projecto de encontrar uma essência - renascer.

4. A NATUREZA TRANSITÓRIA DE UM HOMEM Os desertores deixaram-lhe uma Bíblia para sua salvação. Assim será, com estas páginas conseguirá atear um fogo sobre pedras, como no princípio. A alegria original do calor de uma chama a crescer. No protagonismo dos elementos, a água chega-lhe como primeira cura. Água onde a luz se espelha, espectro oscilante das cores, som imparável de um rio que corre, vida. A natureza está lá, quadro de riquezas em transformação contínua. O divino acontece em matéria, sente-se na certeza das pequenas coisas. Sem livros, sem professores. Sabe-o no rosto o velho índio voltado para os céus, a receber a água que chove. Afinal, a humanidade só depende da natureza. A preservação individual é possível, mesmo quando a sociedade se traiu. 

5. ÁRVORE DA VIDA Uma mulher índia agarra-se aos troncos porque o bebé quer sair. Rasga o cordão umbilical com os dentes e segura o filho contra o peito. Zachary observa tudo. No olhar azul de um homem que se comove é a  humanidade que se vê ao espelho. Revê-se no homem que se alegra porque lhe nasceu um filho. Chora a distância do ontem e tudo o que perdeu na vida que importava. Chora o milagre da sua própria mulher grávida e o próprio filho que não viu nascer e não criou. Alicerces de toda a beleza e de toda a vida entre a mulher e o homem que se olham. A existência encontra a razão no mundo e não na palavra. A experiência produz verdade – seja que verdade for.

6. TERRA-MÃE Este estado de guerra é masculino e está tão longe de ser natural. É a destruição que se opõe ao princípio da criação – regra natural que, em redor, a tudo norteia. Estas mulheres estão mais perto da génese. Não guerreiam, não empunham lanças ou as armas de fogo, não roubam corpos para escravidão. Pelo contrário – índias ou brancas, estas são as mulheres que cuidam, que conservam, que geram. Há no seu rosto paz e paciência, o ritmo da natureza. As gerações migram para diante, sempre, como as águas do rio. A natureza não pára mas o seu ritmo demora. Man in the Wilderness é um elogio do tempo, condição vital da atenção. Zachary, o homem selvagem, vive com paciência a recuperação de um corpo que leva a sarar. Vive no tempo da vida. Bênção em fuga, que o corpo humano é um estado temporário. Na solidão desta espera, o homem selvagem encontra-se plenamente no caminho da humanidade. A sua sede de vingança contra os que o abandonaram desvanece-se enquanto a natureza acontece em si e perante os seus olhos. O ímpeto destrutivo esgotou-se com a regeneração e o seu caminho é incerto, mas segue em direcção à vida.

7. COMO É QUE OS FILMES ACABAM? Acontece quando se ama. Os filmes em si não nos chegam, eles não acabam nunca. Fabricamos esta vontade de mais, já se apagaram os créditos e nós ainda ali suspensos. Já terminou a sessão e ainda o espírito todo ali habitado pelo filme sem ecrã. Antes vazio, agora cheio.


E este é o Cinema que é o algo em vez do nada, matéria do nosso testemunho. (E aí compreendemos o fulgor do cinema de Warhol, epíteto da fome pela proximidade da vida em longuíssimos filmes que idealmente nunca acabariam…) Filmes como Man in the Wilderness acontecem na fome do espírito. E haveríamos de o querer habitar até o corpo sentado se moer de si. É um desejo corrupto: este filme é o exemplo acabado da concisão. Cumpre-se numa simplicidade de onde, pela imagem certeira, quase sempre o texto se ausenta. Som diegético, música pontual. Acção muita, contemplação muita, flashbacks... O esquema formal funde-se à narrativa. Acontece com a depuração de uma parábola. Ainda assim, o mistério – a aura de um filme que espera sempre ser revisto, ser decifrado como um livro denso. Defronte destes filmes, longos em substância, únicos em arte, a memória busca auxílio e evoca ecos nas imensidões prévias. Imediatamente, o espírito de John Ford interpretado com exacta nobreza – Sarafian nunca escondeu esta influência.

8. MEDITAÇÕES SOBRE O FIM Richard C. Sarafian morreu ainda agora, aos 83 anos. E eu à cabeceira, acabo o recente Servidões do Herberto, que aos 83 anos ali medita com cinzelado travo de fim o serviço da sua poesia. Sempre com a palavra que só o seu génio sabe. Que servidões são estas de que fala? Servidões de ser, as inclinações irreparáveis da essência com que se fazem poetas, realizadores, artistas e que tinham mesmo de os fazer assim e não de outra forma qualquer. Servidões dedicadas até ao fim de um talento inato, que lhes coube por ministério e que há que cumprir enquanto lhes durem o corpo, as mãos, os olhos, o coração, a cabeça.

Sarafian foi diversas coisas mas aqui aconteceu em pleno. Pouco se escreveu ainda sobre este tão importante realizador e jamais vi quem reconhecesse Man in the Wilderness como a sua obra suprema. Mas as obras-primas serão obras-primas. Resta que continuemos a falar sobre elas, na modéstia das nossas vozes.

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