quarta-feira, 4 de março de 2015

2014 / MAIS HUMANOS DO QUE OS HUMANOS (Blade Runner)

Mais humanos do que os humanos*
sobre BLADE RUNNER de Ridley Scott (1982)
(*o slogan da Corporação Tyrell é: “Replicants genéticos - mais humanos do que os humanos.)
 “O destino das figuras é transfigurar-se.”
JOSÉ-AUGUSTO MOURÃO

Estamos em Los Angeles, em 2019. Neste futuro apocalíptico, a Terra e a raça humana sofreram as consequências da guerra nuclear e novas colónias fora deste Mundo foram criadas para destino das migrações humanas. A Terra é agora um submundo sombrio, onde a paisagem hi-tech de néons e arranha-céus jaz como uma promessa incumprida, enublada pela poluição e oprimida por uma vigilância permanente. Aqui, os animais foram extintos e bio-engenheiros marginais enriquecem com o negócio da criação artificial de espécies para ostentação, ou constroem componentes sintéticas para humanoides. Numa atmosfera de incerteza, os humanos são o passado e são o futuro. Entre os humanos caminham indistintos os replicants, uma nova raça de androides bio-robóticos geneticamente desenhados pela Corporação Tyrell com propósitos militares e de exploração do espaço, em aspecto idênticos a um jovem adulto humano mas fisicamente aperfeiçoados. A característica psicológica central de um replicant é a sua falta de emotividade, passível de ser medida por um dispositivo Voight-Kampff - método que combina questões de análise empática e máquinas de medição fisiológica -  e que é a única forma de distinguir um humano de um replicant, dadas as similaridades. Encontrar Roy, Pris, Zhora, Leon, Hodge e Mary, os seis replicants modelo Nexus-6 em fuga na Terra, onde são ilegais depois de um sangrento motim no espaço, é a tarefa protagonizada por Deckard (Harrison Ford), um blade runner, oficial especializado na sua eliminação. Estes androides são modelos Mental-A, ou seja, a capacidade intelectual é, pelo menos, igual à do seu criador - como exemplifica o caso do replicant Roy Batty e do seu ‘‘pai’’ Tyrell. Incorporam, por isso, um mecanismo de segurança que determina que a extensão máxima da sua vida seja de quatro anos apenas, impedindo que a inteligência artificial desenvolva mecanismos autónomos de cognição emotiva e de subsequente imunidade ao teste.
Estes replicants herdam a mente artificial de HAL 2000, o malévolo super computador que em 2001 - ODISSEIA NO ESPAÇO (Stanley Kubrick, 1968) evocava já o problema da autonomização da inteligência artificial: a sua evolução poderá culminar na revolta da criação contra o criador, como o monstro nascido das mãos do Dr. Frankenstein. O que significa, afinal, a sua famosa exclamação ‘‘it’s alive” ? Qual é o valor ontológico da vida artificial? Este é o conflito central de BLADE RUNNER. A qualidade que distingue estes androides dos predecessores é terem recebido implantes de memórias relativas a uma vida prévia que não existiu. Um passado-simulacro sustentado por fotografias falsificadas alimenta emoções frágeis nestes replicants e bloqueia inatamente uma consciência acerca da própria artificialidade (por exemplo, em Rachael) e, por conseguinte, de uma extinção precoce. Ou seja, estes replicants não saberiam o que eram se isto não lhes fosse revelado exteriormente. Pris (Daryl Hannah), cita Descartes: “Eu penso, logo existo”. Logo, todas as dúvidas: Será possível tratar toda a informação que compõe um ser humano como software a ser implantado em hardware? Porque coexistem em simultâneo no ser a consciência da vida e da própria finitude desta? A revolta dos replicants, os super-homens, afinal rima com a revolta dos homens. Apesar do progresso, a decrepitude é inevitável : é a dança macabra, essa derradeira incapacidade da existência de aceitar a morte.
No entanto, nesta narrativa distópica a lei terrestre não protege os replicants porque não os considera humanos. Espectadores diários das velocidades da evolução, aqui questionamos realidades hipotéticas nada longínquas: com que princípios tratar seres orgânicos, feitos à imagem, semelhança e escala do ser humano? Será legítimo? BLADE RUNNER convida a avaliar o conceito de Humanidade. Um clima de paranoia constrói-se ao estilo noir, entre incertezas, perseguições e a opressão constante de um controlo corporativo e policial. Os olhos são um leit-motif : quando as memórias podem ser inputs, toda a realidade está em questão. Não é claro quem é humano e quem é replicant. O ‘‘que’’ é, afinal Deckard, o protagonista ?
BLADE RUNNER parte do romance de Philip K. Dick, ‘‘Os androides sonham com ovelhas eléctricas?” e vai muito além de ser um prodígio formal de uma depuração estética memorável - este título de culto do cinema de ficção científica adensa-se no enunciar de questões de natureza religiosa, filosófica, científica, delineando dúvidas fundadoras na (in)definição do ser humano: Para onde vamos e o que nos espera?

SABRINA D. MARQUES (2014)
 escrito para Cineclube de Guimarães

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