sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

2012 / Pedro Jordão e Sabrina Marques | NO FIM SEREMOS TODOS PRINCIPIANTES (sobre 4:44 de Ferrara)


4:44 – no fim seremos todos principiantes
Sabrina Marques e Pedro Jordão



para LA FURIA UMANA #14


PJ: Repara como ele começa por nos apresentar uma situação sem saída enquanto nos segreda que há vários caminhos até ao fim, todos em falso mas todos diferentes – mesmo no fim do mundo existem escolhas, lembra-nos. Até porque se há um fim, não é tão certo que haja uma conclusão, algo que não se pode dizer que exista quando só restam perguntas. Não se reduz o filme à captação do espírito de um tempo que é radicalmente agora, mas também por aí passa. E que melhor maneira de reflectir sobre um processo do que interrompê-lo? "Não recomeces um minuto antes do fim do mundo", diz alguém.

SM: Os olhos não se podem fechar. Na iminência do fim do mundo não se adormece. Cisco continuará a vigilância : ‘fiel a si próprio’, jamais interrompe a sua travessia ávida por informação. A corrente eléctrica nunca se desliga. E como se pudessem contrariar a deriva do corpo, sobrepõem-se os discursos sintetizados na caminhada de Cisco entre televisores, tablets, computadores e telemóveis permanentemente ligados, a emitir reflexões vagas que não aliviam a fome de saber e que, àquela hora, parecem vãs : a sua capacidade de operar uma mudança sobre a realidade é nula. A consciência da falta de acesso a qualquer verdade torna-se insustentável – a única factualidade que se apresenta é a do colapso derradeiro. Abandonados os ecrãs, Cisco decidirá procurar com os próprios olhos. De binóculos em punho, percorre janela atrás de janela para perceber como se comportam os seus pares – que comportamento pode restar ao humano nos minutos que o separam da sua destruição?

Level 5, Chris Marker, 1997




Film Socialisme, Jean-Luc Godard, 2010

PJ: O fim chega "com um aviso prévio, mas sem possibilidade de fuga" e perante o inevitável cessam todas as estratégias, e por isso todos os gestos são súbitos, imediatos, determinados pela vontade, pelo medo, pelo desejo ou pelo acaso – certa incerteza até ao final – e (quase) não parece haver pânico, apenas uma rememoração do que foi irremediavelmente perdido e uma ou outra inclinação niilista inconsumada – um pensamento suicida, a tentação do regresso à heroína há muito vencida, mas mais como expressões de desistência do que de crença na destruição. Tem-se dito por aí o que dificilmente pode ser dito – que Ferrara pende aqui para uma certa suavidade. Como se o assalto ao olhar do espectador fosse mais brando, logo ele que sempre soube ser implacável. Mais certo seria reconhecer que a faca continua encostada à garganta, mas o olhar que a orienta mudou, é mais interior, menos assertivo, mas paradoxalmente menos contornável – Ferrara já não permite que se seja apenas espectador. A violência aqui é outra. Não somos interpelados sobre os outros, mas sobre nós mesmos. De pulsão em pulsão, não há nada a não ser o aqui e agora que até agora julgávamos ser um cliché. Ferrara filma a insuficiência do livre arbítrio, não sem uma certa crueldade, mas não deixa ao mesmo tempo de filmar a resistência das personagens a essa retratada impotência de controlar os seus derradeiros momentos. Por isso, num mundo que surpreendentemente parece continuar a funcionar, as personagens perpetuam ao limite o vínculo ao quotidiano, insistem em pequenos rituais, como a barba cuidadosamente aparada por Cisco (porque Skye gosta), o registo das memórias que Cisco escreve (e que ninguém lerá,) a pintura que Skye vai criando (e que não partilhará com mais ninguém). A repetição parece actuar como uma melancólica e inconfessada celebração de uma agora distante normalidade, como se os minutos de uma contagem decrescente pudessem ignorar o seu destino. E se Cisco ainda parece obcecado com a informação, com essa ligação frágil a um mundo com fim marcado, as imagens sobrepondo-se já sem uma cronologia, Skye continua obsessivamente a criar, sobrepondo camadas de tinta, fazendo e refazendo, adivinhando-se pontualmente um círculo no que vai pintando, isolando-se do mundo, como se preparasse um casulo.


SM: 4:44 é o filme francamente contemporâneo – por múltiplas razões, mas também devido uma vocação expansiva que é simultaneamente inclusiva. Falemos de Chris Marker, que percebeu com auspicioso fascínio a irrupção tecnológica, celebrando a cibercultura desde os seus primeiros passos - no cinema dos anos 90 vimos um mundo protagonizado por seres extraordinários, os cibernautas, a viver uma aventura fantástica de navegação através da obscuridade do espaço infinito da World Wide Web. Em Level 5 (1997), a protagonista Laura é programadora informática e a sua criação aperceber-se-á da impossibilidade de cisão histórica da realidade virtual com o que a precedeu. Focado nas cidades de Tóquio e de Okinawa, Marker reflecte acerca das velocidades da expansão urbana, que parecem tentar sobrepor-se às marcas de um passado que anseia por ser esquecido, uma história colectiva de sofrimento e destruição decorrentes da participação japonesa na segunda grande guerra. Será possível sacudir de si a identidade da terra em que se vive, o que se conhece sobre a história do povo a que pertencemos, e tudo o que se passou antes de virmos a mundo? Com 4:44, Ferrara responde que não : a rede não é um lugar autónomo de uma realidade virtual que se oferece como alternativa à realidade da vida, mas essencialmente um novo modelo de continuação dessa realidade, um outro palco para a vida tal como ela se conhece. Ferrara venceu os pudores que ainda restavam acerca da inserção da tecnologia na linguagem do Cinema, e em 2012, os gadgets foram domesticados, todos os usam e fazem parte da mobília. A prova está no realismo dessa cena francamente atemorizante, em que a necessidade de pacificação da consciência de Cisco o leva a mediar por palavras uma resolução final com a ex-mulher. O virtual já não é um lugar de espectros, de deambulações sob nicknames, de escapes alternativos... Há presença no virtual – aquelas pessoas estão lá. A ex-mulher está presente (não é corpo mas é corporificação, e corresponde a uma identidade concreta). A realidade da dor de Skye, depois de presenciar esse diálogo, não terá como se atenuar minimamente porque ela não está lá fisicamente.

O espectáculo da sociedade contemporânea (para lembrar Guy Debord), a que Cisco dedica os últimos fôlegos da sua vida na Terra, é uma regressão memorial através da informação acumulada, que justapõe dados biográficos a cada uma das imagens jamais apreendidas por si, reclamando-as em pertença equivalente. O mashup absoluto, o gesto da derradeira simbiose entre tudo o que vive, com vocação de infinito. Todos os seres e gerações humanas se dissolvem uns nos outros, em perfeição, em totalidade. Todas as imagens acumuladas no arquivo da mente. Todos os eventos presenciados em todos os ecrãs justapostos numa representação absolutamente contemporânea do modelo de construção da memória individual e colectiva, inserindo a experiência singular num devir histórico em acção.


Assim, explica o Dalai Lama num ecrã, a era da informação é a era da responsabilização : o acesso disseminado ao saber faz corresponder a cada qual um papel activo de inserção na hiper-narrativa totalizante da natureza. Indica-nos que, a partir do momento em que sabemos o que se está a passar, a acção individual passa a ser responsável por tudo, todas as criaturas e causas implicadas no planeta Terra. Como se ouve no filme, não há um culpado a apontar – no fundo, somos todos porque “estamos todos no mesmo barco”. Resgatar a dimensão espiritual no Homem, explica o Dalai Lama, passaria por revitalizar o “sentido de partilha e de comunidade”. Não somos capazes de ser felizes apenas connosco, e a expansão dos sistemas de comunicação é reflexo desta necessidade (Cisco não cessa de procurar respostas fora de si, junto de gurus, de amigos, dos vizinhos...). O Um não é a unidade basilar – a união é a unidade basilar. O Um é o Todo, como explica o dragão que come a própria cauda. A História de toda genealogia humana que vai acabar é a árvore que se corta. (Com o colapso do mundo marcado para as 4:44, a narrativa humana cessará e com ela todos os seus vestígios. Agora situados no cúmulo do progresso material, e no imediato momento seguinte, o Nada... )

PJ: Quando Cisco derruba a árvore no seu sonho, o machado está na mão de todos. Cisco chega a dizer que ninguém tem culpa, mas está sempre a apontar culpados e o sonho revela que não se reconhece a si mesmo o direito à absolvição. Há uma acusação insistente, que corre de ecrã em ecrã, entre entrevistas antigas e conversas de despedida – fomos avisados. E pelo meio, um paradoxo: aponta-se muito a inutilidade das conquistas prévias, enquanto se afirma a fé no que foi destruído. Mais do que nunca, torna-se evidente que os ecrãs são mais do que meros transmissores, antes actuam como superfícies reflectoras, fragmentos de quem os olha, e naquele momento Cisco já não pensa tanto o mundo como se pensa a si mesmo. E no entanto, o seu conflito interno, ao qual não é alheia a voracidade com que ainda tenta aceder ao mundo, tem um contraponto na placidez de Skye, que parece ir vivendo as últimas horas como uma expiração. E para Cisco, Skye é o centro do vórtice – é o lugar a que sempre retorna, a amarra, a última paragem, uma zona de estranha acalmia. Como se tivesse desvendado primeiro um segredo prestes a ser revelado a todos.


SM: É claro que 4:44 assenta irredutivelmente numa negríssima fundação de sarcasmo. Porque, tal como Cisco e Skye, todos nós sabemos acerca da inevitabilidade de morrer mais cedo ou mais tarde – a única diferença é que eles sabem a hora exacta. Assim, parece ridícula a vontade de Cisco de ser certeiro no modo de gastar o último tempo, valorizando-o apenas quando ele se apresenta na eminência de se esgotar. Mas não é verdade que ele está sempre na eminência de se esgotar? Cisco questiona-se acerca do suicídio: não seria apenas uma diferença de horas? É um facto. Mas por qualquer razão inominável, no fundo ainda se mantém a espera – o ser está preso à vida. O corpo humano tende para a sobrevivência, e nem a consciência da morte o demove do projecto de se manter vivo. Esta concentração de tempo é o espaço da crença (“- Vai ficar tudo bem” diz Skye, “- E se eles estiverem errados?”, pergunta um amigo). A dúvida acarinha-se como último reduto e a finitude visível do corpo humano – que é tanto "vida morredoura” como “morte vivente”, como escreveu Santo Agostinho – depressa se suplanta pelas distintas adopções individuais da mesma estratégia de resistência. Um amigo de Cisco partilha a sua efabulação delirante acerca de um corpo renovado por chegar, um corpo com asas que arranca da superfície da terra até ao céu. Perante a eminência da morte, todos os paraísos são possíveis, todo o tipo de superações do corpo e de reconfigurações do espírito são válidas desde que dentro daquele que é, se guarde alguma conjugação do verbo “existir”. “Para quê deixar alguém mandar em ti se vais morrer?” – A interrogação de Cisco ultrapassa as fronteiras do ecrã até cada um dos espectadores. Em consideração está a medida Tempo, e a universalidade do seu valor.

PJ: Falaste em ‘espera’, e eu falei em ‘expiração’. Há por ali dois modos distintos de habitar o tempo, já foi insinuado mas tem que ser sublinhado. Cisco tenta cumprir o que resta do mundo, Skye já o deixou, interrompendo a partida apenas perante o intolerável – não o fim do mundo, mas a ameaça de perda do amor de Cisco. O amor (e Ferrara não disfarça que o filme também o declara) é para Skye um veículo mais definitivo do que a morte, uma porta de entrada para um outro plano. "Estamos juntos, vamos juntos", diz em jeito de prece pouco antes do nada, os dois deitados e unidos no meio de um círculo mais-do-que-perfeito – o Ouroboros, o dragão em círculo comendo a própria cauda, símbolo ancestral de transformação perpétua, de eterno retorno, sabotagem implícita da morte.


SM: A frase de Cisco ‘já estamos mortos’, e a de Skye ‘já somos anjos’, são contra-sensos semânticos. Relembram-nos como a partir do momento em que a consciência da morte começa a agir sobre os corpos, estes já não são vivos, já são mortos-vivos.

PJ: Ou super-vivos, como se o fim fosse inevitavelmente uma sublimação. (Já tínhamos tido, em Mary, uma personagem de Ferrara a retirar-se do mundo e fazendo da espiritualidade um caminho, mas não assim, com esta fome pelo outro, com esta carnalidade, tanto nos momentos de encontro entre os corpos de Skye e Cisco como na constante troca de roupa, enfim, de pele, que Skye executa como um ritual de transformação, de preparação para um novo ciclo.)

SM: Simultaneamente, descreve-se a sofreguidão de valorizar as ligações humanas, como na superficialidade desse momento em que Skye abraça o rapaz vietnamita e exclama um “Obrigada por te ter conhecido”. Obviamente, não é porque lhe sabe o nome ou lhe emprestou o computador que já o conhece – aliás, porquê querer saber sobre ele enquanto pessoa agora, quando até aí a sua presença equivalera a um serviço?

PJ: Ou quando Cisco, do cimo do seu terraço, exige aos desconhecidos que passam em baixo na rua que respeitem o corpo sem vida do suicida respeitando a sua última decisão, não lhe tocando e não lhe cobrindo o rosto. O que ali se recusa é o eufemismo, é tarde demais para isso, como provou aquele homem que se adiantou à hora. O que também ali se prova é que antes, como agora, o mediador mais determinante de todos não é um dispositivo electrónico mas o olhar do outro.

SM: 4:44 também é um filme sobre o Cinema. O caudal de imagens a suceder-se defronte dos olhos confirma a ditadura contemporânea do estímulo óptico. A “super auto-estrada da informação” – a expressão é de uma das personagens secundárias deste filme, Al Gore – corresponde a um museu imaginário composto pela memória da civilização. Godard ensinou-nos acerca da complementaridade na multiplicidade através das suas Histoire(s): o filme é um projecto utópico que, na sua perfeição última, seria absoluto, compreenderia em si a totalidade. Tal como esse último instante de vida, descrito pelo guru zen, em que todas as imagens possíveis se dissolveriam entre si em simultâneo, numa porta para a compreensão.
Histoire(s) du Cinéma: Toutes les histoires, Jean-Luc Godard, 1988

Será possível a salvação pelas imagens? Godard volta sempre a esta questão e, com Film Socialisme, insere-nos na era da representação; as personagens não se cansam de fotografar e filmar, e o filme multiplica-se entre infinitas estéticas através das opções que a contemporaneidade disponibilizou. As dinâmicas da relação do olhar do realizador perante as novas possibilidades da técnica  são activas e contemplativas : o realizador que olha para a câmara (que selecciona através dos seus limites o que deseja ver), volta o olhar para aquilo que a câmara viu, apercebendo-se das especificidades do contributo da máquina. O papel do realizador é o de ordenar o caos, de circum-navegar através da infinitude deste mar de imagens (uma rota fisicamente descrita em Film Socialisme). Como anotou David Phelps acerca de Film Socialisme, “Godard ignora voluntariamente a diferença entre cinema e fotografia; nunca se cansa de repetir, desde Longe do Vietname, que duas fotos bastam para fazer uma montagem, isto é, cinema.” 4:44 é também um filme sobre montagem, que problematiza a responsabilidade (da arte) de criar no meio do excesso. Na sua busca por uma pureza primordial, o filme professa uma réstia de fé na representação – esta resposta chega através de Skye, que se dedica de corpo inteiro à representação manual (contra todas as informações possíveis de ser capturadas ou difundidas pelas máquinas) : de mãos submersas no mar de cores, de contacto com a matéria-prima em bruto, Skye progride entre as manchas cromáticas que se vão mesclando, num ensaio até ao negro - ventre de onde faz nascer a sua única figura. A figura perfeita.

PJ: E no fim o branco, que se é um lugar onde nada existe, é também um lugar onde tudo pode vir a existir.






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