domingo, 16 de julho de 2017

2017 / VILA DO CONDE Ode Marítima



VILA DO CONDE, ODE MARÍTIMA
SABRINA D. MARQUES


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Festival, Jean-Claude Rousseau, 2010


Há mar e mar. Se penso em Vila do Conde, só vejo a estrada que vai do negro da sala ao azul exterior - e aquele incessante cinema com vista para o mar lembra-me, precisamente, de um filme chamado Festival (de Jean-Claude Rousseau, 2010) que, num cross-fade, monta uma plateia no mar. Para mim, terra e festival confundem-se e Vila do Conde inventa-se como um verbo de movimento: ‘‘cinemar’’ (i.e., ir ao cinema): nesse vaivém da experiência absoluta, os filmes dissolvem-se nos horizontes abertos da pitoresca terra de pescadores. Defronte do espectáculo marítimo, recordo-me dos versos de Afonso Lopes Vieira: ‘‘Que era dantes o mar? Um quarto escuro / Onde os meninos tinham medo de ir. / Agora o mar é livre e é seguro / E foi um português que o foi abrir.’’ A inclinação naval que convidou a vontade de aventura, também plantou entre os portugueses uma potência poética, essa ‘‘sensibilidade por natureza’’ e, se a construção da nossa literatura tanto se inspira e dedica a esse misteriosa força, esta é condição simultânea da ventura e da agrura. Ao longo de um século, sucessivamente se cantaram as nossas Histórias Trágico-Marítimas, impressionantes relatos de naufrágios e desastres. Através das eras e dos 943km de costa deste país de pescadores, vimos como os que vão nem sempre voltam do mar salgado ‘‘quanto do teu sal / são lágrimas de Portugal!” lamentou Pessoa, que contrapunha ao conservadorismo melancólico o futurismo triunfal da sua Ode Marítima, pela voz de um Álvaro de Campos que febrilha na vida de um Cais Absoluto:‘‘Ah o Grande Cais donde partimos em Navios-Nações! O Grande Cais Anterior, eterno e divino!’’. Mas não só com a palavra se falou do país que é o ‘‘jardim da Europa à beira mar plantado’’ (súmula de Tomás Ribeiro); também o cinema se apressou a trazer-nos à beira-mar. E se as histórias simples da ideologia nacionalista chegavam ao grande ecrã elogiando as epopeicas façanhas dos pescadores contra as tempestades e as tormentas, muito diferente é o mar ocupado pelo turismo e pelo lazer do cinema português contemporâneo.
Estamos no CURTAS Vila do Conde, em 2015, e o filme Maria do Mar de João Rosas acaba de ganhar a Competição Nacional precisamente para nos falar desta transição. Homónimo ao iniciático filme mudo de 1930 (realizado por Leitão de Barros), ainda que também conte uma história de amor, não o podia fazer mais distintamente: longe das raízes etnográficas do simbolismo marítimo, longe do elogio regionalista, longe do impressionismo épico do docudrama, este mar é radicalmente outro. E esta mulher também é outra. (E nisto ocorre-me que seria possível traçar um mapa da progressão da mulher na sociedade portuguesa a partir do seu retrato nos filmes marítimos.)
‘‘Que sou eu em frente a este mar’’? - a pergunta essencialista de António de Navarro também busca, afinal, fixar a ideia, particular e plural, que fazemos da Portugalidade. Em Vila do Conde, penso como os festivais são autênticos ginásios do exercício cinéfilo. Vimos os filmes em sala, voltamos a vê-los à luz das opiniões exteriores e não nos deitamos sem os ver de novo, sono adentro. E, pelo caminho, o diálogo lançou-nos os olhos para o interior de filmes imaginários, títulos convocados pelos pares com o propósito de ilustrarem os seus juízos. São autênticas imagens vindas ‘‘de sobre e de dentro da solidão/ nocturna dos mares’’, estes desconhecidos filmes - enquanto os pudermos apenas sonhar. Aproximam-nos do passado: recuamos até às páginas da antiga cinefilia para nos encontrarmos com as magníficas prosas do delírio, assinadas por esses pobres apaixonados sem torrents, sem internet, sem netflix, sem DVDs e sem blurays que, sobre o mistério, sonharam filmes mais-que-perfeitos. Esta cartografia imaginária inspira-me uma outra e hoje embarco na minha memória marítima, com uma questão à proa: que mares guardei do cinema português? (Deixo um aviso à navegação: o mapa será errante, a viagem imprecisa, equórea, delirante...)
Partimos pelos mares de VILA DO CONDE, escutando José Régio, ali nascido e criado: ‘‘Ai mar de Vila do Conde, Ai mar dos mares, meu mar!’’ Recordamos o título que lhe presta homenagem, Vila do Conde Espraiada (2015), filme produzido pelo festival e realizado por Miguel Clara Vasconcelos, rapaz da terra que aqui evoca a sua vivência à beira-mar entre a reconstituição e as imagens de arquivo, que mostram como os costumes balneares das estâncias sazonais da Vila contrastam com a sua ancestral génese piscatória. Seguimos até à NAZARÉ, como nos recorda Leonor Areal, uma das ‘‘paisagens étnicas do estado novo’’: À procura de ‘‘autenticar o povo’’, estes destemidos pescadores que enfrentam o mar bravo são verdadeiros heróis do mar (Henrique Mendonça), herdeiros da coragem de uma raça de descobridores (Álvaro de Campos). De raízes trágico-marítimas, esta mitografia propagandista está associada não só à glorificação do esforço sobre-humano na luta contra o mar (recurso indispensável para a subsistência destas populações), como ao lusitanismo do fado e da saudade. Apesar de, por norma, se organizarem em torno de uma história de amor simples, estes filmes de pescadores contêm, invariavelmente, uma aterrorizadora cena de tempestade, emoldurada pelo sofrimento colectivo das mulheres, e pelo desespero e devoção das populações pobres nas praias.‘‘E a perene maré, / Flui, enchente ou vazante’’, escreveu Ricardo Reis sobre a imprevisibilidade das condições, onde a pesca se torna um jogo ao qual se tem sorte ou não. O compartilhar dessa saudade convocada pelo mar, na suspensão do retorno e da partida, produz um ‘‘saudosismo integralista’’ (António Sardinha), sofrimento alimentado pela repercussão dos relatos trágico-marítimos na constituição da identidade portuguesa (entre  1552-1602, um quinto da população portuguesa - dois milhões e meio - andou em viagens marítimas). É a meditar sobre a portuguesíssima saudade que nos vemos chegados a SÃO PEDRO DE MOEL, onde Afonso Lopes Vieira se inspirava. ‘‘Chora no ritmo do meu sangue, o Mar’’, escrevia sobre o Penedo da Saudade, onde ainda hoje se encontra o farol que o seu conterrâneo António Campos filmou em 1965 para os últimos planos d’A Invenção do Amor, à época censurado por mostrar a luta de um casal perseguido pela polícia pelo metafórico crime. A trama dos jovens que resistem juntos às adversidades traz-nos ao FURADOURO, emblema do Cinema Novo, onde Paulo Rocha (curiosamente, com assistência de António Campos) realizou Mudar de Vida (1966). Apesar do subtexto alicerçado na etnografia primitiva do cinema português (a pequena povoação, os pescadores, a faina pesqueira), este filme inaugural interpreta ‘‘o exemplo moral e estético do neo-realismo’’ (M.S.Fonseca), cruzando influências importadas a Visconti ou a Rossellini, com gramáticas à Nouvelle Vague. Também o expressionismo alemão e o cinema japonês modelam este retrato da água como elemento transicional, poder de destruição e de serenidade, derradeiro símbolo da passagem inscrita no título. Navegamos até à FIGUEIRA DA FOZ, cenário de Uma Abelha na Chuva (1971), título de chegada de Fernando Lopes à ficção e outro dos alicerces definidores do Cinema Novo. Em ruptura com as narrativas clássicas, a estrutura do filme refunda-se na potência desconstrutiva da montagem, laboratório infindável de formulações. O resultado deste experimentalismo é um filme transgressor que ‘‘obedece ao projecto anti-naturalista de Fernando Lopes’’, lembra José Manuel Costa. E quem haveria de, a partir destas horas, vir cultivar o anti-naturalismo? Estamos em LAGOS, em 1970, e ouvimos Sophia a declamar para a voz-off os versos que melhor lhe lembramos: ‘‘Quando eu morrer voltarei para buscar / os instantes que não vivi junto do mar’’. A ocasião é a da estreia de João César Monteiro na realização, que excede todas as expectativas com um superlativo retrato marítimo da grande cantora do mar da poesia portuguesa. João César gostava tanto da autora de A Menina do Mar como do mar que a inspirava - e só podemos adivinhar que este filme homónimo, com uma proximidade de home-movie, decerto não lhe tenha custado a fazer, apesar de ser uma encomenda para a Gulbenkian. Para sublinhar esse continuado mergulho de um cinema que, desde então, revisita o mar filme após filme, João Bénard da Costa chegaria a afirmar: ‘‘Sempre se disse – até eu disse – que foi Sophia quem levou César para o mar.’’ Verdade tornada literal, se recordarmos os assombrosos planos em que Sophia se perde, simplesmente, a nadar - e, de repente, é como se a estivéssemos a ouvir: ‘‘A terra o sol o vento o mar / São a minha biografia e são meu rosto’’. João César voltaria ao Algarve em 1986, desta vez a TAVIRA, para gravar À Flor do Mar, esse filme de superfícies, como lhe chamaria Bénard. Inspirado no caso real de Abu Nidal, este enredo (em que se ouve falar italiano, algarvio e inglês) é protagonizado por uma italiana que ajuda um atirador árabe que acabou de assassinar um palestiniano e que dá à costa, ferido, num súbito barco de borracha à tona na linha do horizonte. Este mar de fuga e de chegada, de transposição e de entreposto, é o primeiro retrato do oceano comum que se abre com a CEE (a que Portugal acabara de aderir, em 1985). Entre as águas da mudança, ouvimos Álvaro de Campos evocar os ‘‘homens do mar actual, homens do mar passado’’ e mareamos até SETÚBAL, para tomar parte numa das mais vivas demonstrações do cinema militante do imediato pós-25 de Abril. O documentário Setúbal Ville Rouge (1975), dos franceses Daniel Edinger e Michel Lequenne, dá voz às várias associações, comissões e organismos de poder popular, que compõem aquele microcosmos industrial estrategicamente costeiro, delegando-nos o projecto de reflectir sobre o mar do ponto de vista dos recursos (esse sebastianismo dos discursos políticos). ‘‘Restam estas mãos, de frente ao fracasso do oceano’’: eis que o lirismo irmão de Marguerite Duras, que traçou o perfil d’O Homem Atlântico (1982), nos empurra para as ilhas. É no Faial que nos encontramos em águas do rei Tritão, guardião das piscinas naturais do Varadouro (2014) - nome da curta mitológica assinada por Paulo Abreu e João da Ponte*.  Em tons atlânticos, amainamos nos versos de Nicanor Parra, ‘‘Ao longe um país sem nome navegava,/ Como quem reza uma oração me disse / Com a voz que trago intacta nos ouvidos: / «Este é, rapaz, o mar». O mar sereno, / O mar que banha de cristal a pátria’’. Desaguamos na baía de SESIMBRA, onde consta que demorou dez anos a ser filmado um projecto que, então, adquiria na imaginação colectiva o título informal de Elogio ao Surfista. Em 2011, Joaquim Sapinho viria a apresentá-lo como Deste Lado da Ressurreição, reconfigurando um mar de forças bíblicas, potência elementar catártica, que eleva em ascese um surfista que reconhece ao mar o poder de o curar da vida comum. Seguindo as pistas da ‘imatéria’ de um desses verdadeiros filmes imaginários, subimos até MIRAMAR, PRAIA DAS ROSAS para inventar arqueologia para o documentário homónimo que Manoel de Oliveira filma em 1938, e do qual não se conhece nenhuma cópia.‘‘Ó mar, ninguém conhece os teus fundos abismos’’, anunciou Baudelaire, já a pensar nos navegadores do futuro - e em todos os filmes por encontrar que lhes conduzem a viagem. Celebrar os 25 anos do Curtas é cantar a descoberta: resgatar, ziguezaguear do passado ao presente e ir, ir plenamente, na desamarra do cinema, Largo Oceano que só une.


* Dedico este texto a João da Ponte (1957 - 2016), que nos deixou sem poder produzir um filme que, com Paulo Abreu, sonhava para o mar dos Açores. Agradeço a Paulo Cunha pelos contributos no decorrer deste processo de escrita.

Sabrina D. Marques colabora com publicações nacionais e internacionais. Doutoranda em História da Arte, trabalha em investigação, produção, escrita e realização de cinema. Artista visual, programadora da Galeria Germinal e co-fundadora do núcleo de programação alternativa Whitenoise.

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